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Por Vasco Câmara
11.05.2010
11.05.2010
"Copie Conforme" foi um dos filmes mais aguardados no Festival de Cannes.
É o primeiro filme que Abbas Kiarostami realiza fora do Irã - rodado em Itália -, é falado em inglês e francês, protagonizado por uma estrela europeia, Juliette Binoche, e, sim, "Copie Conforme" já está banido dos cinemas iranianos.
Mas nada de novo aqui: o último filme do realizador distribuído no Irã foi "O Sabor da Cereja" (Palma de Ouro em Cannes, em 1997), isso há mais de 12 anos.
Copie Conforme" é uma história "boy meets girl", definição do próprio realizador: ele é um autor inglês (o cantor de ópera William Shimell) que promove em Itália o seu último livro e dá palestras sobre arte, sobre a relação entre os originais e as cópias; ela (Binoche) é a proprietária de uma loja de antiguidades.
Foi uma personagem escrita pelo realizador para a actriz francesa depois da colaboração de ambos em "Shirin", o anterior filme de Kiarostami (ainda não exibido em Portugal). "Copie Conforme" coroa uma amizade de mais de uma década.
Foi durante uma visita ao amigo Abbas, em Teerã, quando o cineasta rodava "Shirin", que Juliette não só se intrometeu nesse filme, sendo a única europeia num cast de quase centena e meia de iranianias, como comoveu o realizador.
Como as outras actrizes, tinha apenas que se sentar durante uns minutos, olhar para uma folha em branco e abrir as represas das suas emoções, Abbas na montagem trataria do resto, ou seja, de inventar um percurso emocional que justificasse os rostos e as emoções de 140 actrizes - "Shirin" é uma prodigiosa assemblage de rostos montados a que foi acrescentada uma banda sonora em que se ouve a representação de um texto clássico persa, sofisticadíssimo exercício, portanto, sobre as operações emocionais do espectador.
"Tive a sensação, nesse dia, de que ela estava sentada num confessionário", disse o realizador, citado pelo Le Monde. "Copie Conforme" nasceu aí, e o Monde faz eco de uma "lenda", a de que o jogo de Binoche numa cena do filme foi de tal forma intenso que uma lágrima foi vista no imperturbável Abbas.
Sim, esse que raramente é visto sem os seus óculos de lentes fumadas, sim, esse que Binoche pintou - os olhos, finalmente, ela viu-os -, retrato publicado no livro Portraits In-Eyes, que mostra a forma como a actriz olhou para os cineastas com quem foi trabalhando.
Casal-fantasma
"Copie Conforme" é "boy meets girl", então: ele e ela passam algum tempo juntos nas ruas e nos becos de uma aldeia da Toscana, e partirá da personagem de Binoche, insatisfeita, a ideia de os dois jogarem ao jogo do casal, tomando ele o lugar do distante marido dela. E jogam, e entre mentiras e verdades a cópia começa a não se distinguir do original.
O fantasma de Roberto Rossellini e do casal que se tenta reconstruir em "Viagem a Itália" paira por aqui. O que não é excessivo delírio de cinefilia tratando-se, como se trata, de um cineasta que num momento inicial da sua obra foi "lido" como rosselliniano - com uma transparência rosselliniana, quer-se dizer. Isso veio a ser ultrapassado: a obra do iraniano revelou-se pródiga em jogos e máscaras, começou a ser olhada, retrospectivamente, pelas suas obscuridades e perversidades, e "Copie Conforme", claro, terá os seus argumentos.
Como é produção da francesa MK2, que há uma década está por trás do trabalho do iraniano, as autoridades não permitem que o filme apareça nas salas do Irã.
Explicou Kiarostami ao Jornal do Brasil: "A censura [no Irã] tem pouco a ver com o conteúdo dos filmes. Alguns lidam com aspectos da vida social no Irã, mas muitos outros, sem qualquer fundo social ou político, têm sido banidos do país. Volto a frisar: o problema não é o conteúdo ou o tema, mas a forma como os filmes são feitos, sem o controlo directo do Estado. Graças às tecnologias digitais, com câmaras mais leves e baratas, muitos jovens cineastas passaram a fazer filmes sem depender do governo."
No caso da obra do iraniano, precisamente, essa (não) relação com a política tem sido interrogada no Ocidente. Como se se esperasse sempre de um cineasta iraniano uma frontal afirmação face ao que se passa no país - recorde-se o documentário "Green Days", de Hannah Makhmalbaf, do ano passado: statement em directo dos dias em que muitos iranianos demonstraram euforia pela mudança, e depois depressão pela derrota, com as eleições presidenciais - e, no caso de Kiarostami, não se conseguisse mais do que sinuosos atalhos.
Como aqueles que Abbas mandava abrir para filmar as figuras na paisagem em "Onde Fica a Casa do Meu Amigo?" ou "Através das Oliveiras". Mas não será "Shirin", o filme anterior, com a sua majestosa imposição de rostos de mulheres, também um filme político, transgressor?
Sobre isto Kiarostami também falou ao Jornal do Brasil. "Distingo o impacto da revolução [política e social] no meu dia-a-dia do meu trabalho. Incidentes ou crises só poderão influenciar a minha obra a longo prazo. Sempre evitei reacções emotivas nos meus filmes. Acho que a arte é um campo que exige uma certa distância temporal de um facto histórico para que possa usá-lo de forma apropriada. No mais, separo o que sinto como cidadão iraniano do que faço para ganhar a vida. Não seria capaz de fazer filmes com esse tipo de aspecto jornalístico."
E foi como cidadão que escreveu uma carta aberta às autoridades do Irã a reclamar a libertação do seu colega, o cineasta Jafar Panahi, preso em março. "Implorei para que as pessoas não sejam presas nesse país devido às suas actividades artísticas, e para que os criadores deixem de enfrentar obstáculos, falta de apoio, preconceitos. Nos últimos 12 anos de trabalho todos os meus laços com o Estado, com esse país, estão cortados. Não espero mais nada, mas continuo a trabalhar", dizia ao francês Le Monde.
"A população iraniana vive em tal aflição que é preciso que cada um, na sua função, faça prova do seu sentido de dever. É preciso que o padeiro acorde de manhã dizendo a si próprio que, aconteça o que acontecer, deve entregar o pão fresco aos habitantes do bairro. É preciso que os responsáveis da cultura percebam o seu dever perante o povo."
"Copie Conforme" (pela Atalanta) e "Shirin" (Midas) foram comprados para o mercado português. Juliette Binoche, para além de intérprete de um dos filmes mais esperados do festival de Cannes, é o rosto e o corpo desta edição - o cartaz é ela.
ipsilon.pt