O fascismo explicado pelas crianças


Por Vasco Câmara
21.05.2009


"The White Ribbon", de Michael Haneke

Alemanha, início do séc. XX, um mundo que exacerba o ascetismo e a punição. O que fazem as criancinhas?

E assim se explica o fascismo? Michael Haneke não gostou da pergunta. Dizia ele ontem que sendo austríaco, passando-se o seu filme, "The White Ribbon", numa aldeia alemã, a palavra "fascismo" levará facilmente a que alguém se deixe de implicar na questão.

Escusando-se com um: "É um problema dos alemães, e dos austríacos, daquela zona da Europa".
Haneke propõe então olhar desta forma para "The White Ribbon": "O que eu quero dizer com este filme é que quando se ergue um absoluto como princípio, um ideal, seja ele religioso, político, isso torna-se inumano, torna-se a origem do terrorismo. Porque abre caminho ao aparecimento daqueles que punem os que não correspondem a esse ideal", disse, em conferência de imprensa.

Projecto que prepara há 10 anos, e que chegou a ser pensado para uma mini-série televisiva, "The White Ribbon" esteve para se chamar "A mão direita de Deus".

É o fascismo - o terrorismo, a violência, o Mal - visto à lupa, um microcosmos: uma aldeia protestante, norte da Alemanha, uma organização social, rígida, paternalista, que se foi com o vento da destruição da I Guerra Mundial.
Mas que deixou sementes. Há o barão, a baronesa, o pastor, o médico, o professor, a governanta, os agricultores e rendeiros. A mansão, a igreja, a escola, os campos... E depois, como criações deste mundo que exacerba o ascetismo e a punição, as criancinhas...
O que fazem elas? Estarão por trás da série de incidentes ritualísticos, monstruosos, que começam a acontecer na aldeia?

Sabemos o papel que as crianças têm na obra de Haneke. Sabemos, também, que o seu cinema convoca dados para que a mistura permita uma experiência de laboratório.
Em "The White Ribbon", o realizador experimenta com a frieza e com a abstracção do preto e branco, com uma voz "off" literária, distanciada, que narra, comenta e simula espanto perante o que se passa - a voz, cujo "dono" vamos conhecer, começa, aliás, por se assumir como não omnisciente em relação ao que vai contar.

O rigor das formas é, assim, também um dado para o tubo de ensaio, serve a experiência. Houve quem se lembrasse de Bergman, poderíamos acrescentar o "Effi Briest", de Fassbinder –
cineasta que filmou, incessantemente, a violência, o fascismo como herança.

Houve quem falasse nas referências para iluminar as "marcas de cinema" que existem em "The White Ribbon" (é por elas, cremos, que o filme foi apontando como candidato à Palma de Ouro - Haneke, recorde-se, recebeu em 2005 um Grande Prémio do Júri por "A Pianista", com Isabelle Huppert, este ano presidente do júri).

Mas, referências à parte, "The White Ribbon" é um filme em que a experiência e o seu resultado são conhecidos, sentidos, pelo espectador logo desde o início. O que limita o fôlego cinematográfico: mesmo que Haneke diga que o filme não tem uma tese a defender, cinematograficamente é uma experiência de determinismo.

E o que é que esconde um escroque? Por exemplo, um ser amável e desejoso de ser amado e de auto-estima. É este o olhar de Xavier Giannoli, em "À l'Origine" (competição), para uma personagem, interpretada por François Cluzet, que o realizador e argumentista criou a partir de um "fait divers" da sociedade francesa dos anos 90: um ex-presidiário, desempregado, conseguiu enganar toda uma região - economicamente assolada pelo desemprego - ao fazer-se passar por encarregado de uma empresa (que não existia) responsável pela construção de uma auto-estrada. Que não levava a sítio nenhum. E que foi construída. Dando emprego a toda uma região.

Inevitavelmente, pensa-se em outros títulos do cinema francês que se aventuraram pelo mundo de quem se construíu como uma mentira. Por exemplo, "O Adversário", de Nicole Garcia (curiosamente, também interpretado por Cluzet) ou a versão de Laurent Cantet da mesma história, "O Emprego do Tempo".

Mas a Giannoli não interessa a claustrofobia do mundo do trabalho, como interessava a Cantet. Interessam-lhe as possibilidades romanescas dos seres em construção, no caso concreto o enigma de alguém que economicamente não lucrou com o embuste que fabricou e que até se ia responsabilizando, como pai atento, por aqueles que ia enganando.

Mas aí, "À L'Origine" nunca desce ao mundo das sombras. Evita o negrume. Amavelmente escrito, filmado e interpretado, é uma versão "middle of the road" de coisas mais angustiantes.

ipsilon.pt