A mulher invisível de Mussolini e o casal selvagem de Alain Resnais

Por Vasco Câmara
Cannes, 20.05.2009
Duas entradas na competição: "Vincere", de Marco Bellochio, ou Benito Mussolini visto pelo olhar da mulher que ele apagou da História; "Les Herbes Folles", ou o amor como princípio de desordem.

Benito Mussolini, e não apenas o Hitler de "Inglourious Bastards", também chegou à competição de Cannes. "Vincere", de Marco Bellochio, olha Mussolini a partir de um asilo onde foi internada uma mulher, Ida Dalser, que foi o seu primeiro amor, a mãe do seu primeiro filho.

Eram os anos de formação de Benito, à beira da I Guerra Mundial, quando o futuro ditador era socialista e ainda não fascista. Depois de uma potentíssima ligação erótica entre Benito e Ida, esta e a criança entretanto nascida foram apagadas da História, e forçadas a internamento por "loucura".
, Filippo Timi
Bellochio filma a personagem dessa mulher (interpretada pela actriz Giovanna Mezzogiorno) como uma espécie de resistente ao ditador -travando uma guerra no plano íntimo.

A partir do momento em que Ida é internada, Benito deixa de ter, em "Vincere", o corpo e o rosto do actor Filippo Timi (é uma audácia do filme). O confronto da personagem feminina (Giovanna Mezzogiorno começa a ser indicada como candidata a um prémio de interpretação...) passa a ser, então, com imagens de arquivo de Benito Mussollini - que ela vê, por exemplo, em salas de cinema, em documentários.

É toda a Itália que aparece, então, refém no asilo deste filme, transtornada, enfeitiçada, despojada da sua identidade.

Uma alegoria, a obra de Bellochio é um objecto que tenta uma síntese: encenado e "musicado" como uma ópera, utilizando imagens de arquivo como um manifesto futurista. Inteligência e intencionalidade não lhe faltam. Mas sobra-lhe, e durante as duas horas de filme isso fá-lo vergar perante tamanho peso, em programa "cultural". Que não o liberta, ainda assim, do compacto televisivo prestigiante.

Pelo contrário, é muito mal educado, porque é inclassificável, "Les Herbes Folles", de Alain Resnais, cineasta que esteve em Cannes pela primeira vez há 50 anos. Mas Alain Resnais é um cineasta de hoje.

Com os seus actores habituais (Sabine Azéma e André Dussolier) a liderarem um "cast" onde está uma outra geração de intérpretes franceses, como Emmanuelle Devos, Mathieu Amalric ou Sarah Forestier, e sempre a partir de um material dramatúrgico, quer seja romance ou peça de teatro, que não tem problemas em habitar zonas contíguas aos encontros/desencontros da comédia de "boulevard", Resnais filma a formação (e aniquilação violenta) de um par.

O acaso, o roubo de uma carteira, coloca Azéma e Dussolier, que tudo, até a idade, indicaria estarem sentimentalmente "arrumados", em rota de colisão (é literal, a comédia vira tragédia). Como se seguisse um fio em que a loucura se vai improvisando, à imagem da vegetação que teima em crescer, espontaneamente, nas fendas do cimento, Resnais segue essa história de desordem - como lhe chamar: de amor? Resnais escreve, pinta e gesticula com o seu cinema, com a sua câmara.

Faz teatro, faz filme caseiro e faz produção da Hollywood clássica, simulando "happy ends" sinfónicos. Faz um filme não domesticado, selvagem.

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