Teatro É Vida


Festival Internacional de Teatro de Rua

Por Sara Dias Oliveira
19.05.2010

A partir de dia 27, na décima edição do Imaginarius - Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira, haverá presos a falar da culpa, idosos a voltar ao tempo em que as maçãs ainda vinham directamente das árvores e ciganos a apoderar-se de Shakespeare.

Uma comunidade inteira, à conquista do espaço público.
As feridas sangram por dentro. Aqui, o bem e o mal olham-se nos olhos. Há a culpa e o perdão. Pedro Paiva abraça a sua almofada azul, companheira de mais de seis anos. "Quando entramos nesta casa, dão-nos um colchão, uma almofada, uma fronha, dois cobertores, dois lençóis, um copo e talheres".

A casa é a prisão de muros brancos com arame farpado à volta. "No final de cada dia, a almofada é a minha melhor companhia: apaga as minhas mágoas, guarda os meus segredos. Ela, tal como eu, carrega o peso da minha reclusão".

Pedro está num ensaio e as frases farão parte de um monólogo de "Entrado", espectáculo que terá estreia na próxima quarta-feira, dia 26, no Estabelecimento Prisional do Porto, em Custóias, É a produção que abre a décima edição do Imaginarius - Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira, na véspera do arranque oficial.

Com repetição a 27 e 28 de Maio. Sempre às 21h, sempre em Custóias. Trinta presos falam sem rodeios das suas experiências. O corpo também fala. E muito.
A música de Camané sai do gravador: "Já gastei a primavera do meu tempo e não me entendo".

Os presos levantam os pratos e enchem-nos com a água que despejam pela cabeça. Limpam-se. Lentamente lavam a cara e o corpo. Tentam livrar-se da culpa. Há mais histórias para contar.

Francisco Alves tem 16 tatuagens no corpo. A última é dedicada à filha de dois anos e meio. Nas costas: "Eu acredito que preciso de mudar, penso em mudar. Eu já estou mudado, e descubro que eu realmente não mudo...". Francisco é jovem, tem brancas no cabelo, quer descobrir o seu lado bom.

Emanuele Muzio vai rasgando as folhas dos dias que passam. "Aqui dentro não há descanso e o calendário é uma máquina do tempo. Às vezes é amigo, às vezes inimigo. Aqui dentro é necessária muita calma, mas eu continuo à espera do meu dia vermelho, do meu dia de liberdade".

Abel Sousa tem uma colher na mão que lhe traz boas e más recordações. "Esta é a história da minha colher, dada pela minha mãe, com a qual comi as primeiras papas e a sopa". Quando a usa ainda sente o sabor de quando era criança. "Mas é também a colher onde se faz o chamado caldo, e pode ser uma arma".

Crime e castigo
"Entrado" é o nome que se dá ao preso que acaba de entrar e, por isso, só fazia sentido apresentar este espectáculo na prisão. Com ele, o Imaginarius volta a sair da fronteira de Santa Maria da Feira e, uma vez mais, aposta numa produção própria feita por gente que nunca esteve num palco.

Desde Setembro do ano passado, que a PELE_Espaço de Contacto Social e Cultural, o Centro de Criação para o Teatro e Artes de Rua, que agora assume a direcção artística do festival, e o estabelecimento prisional estão juntos neste projecto. Não houve "casting", apareceu quem quis, e a história acabou por ser escolhida pelos próprios reclusos. Quiseram olhar para dentro.

Mastigar a culpa e o perdão
Tudo começa à entrada da prisão. Quatro reclusos segredam ao ouvido do público as frases que se murmuram quando alguém entra na prisão. "Vais sair daqui um homem". "Estás cá porquê?". "Quem és?". "Precisas de ligar para alguém?". "Estás por minha conta". "Bem-vindo".

A banda da prisão entra em cena para interpretar uma versão mais pesada de António Variações, aquela do corpo que paga quando a cabeça não tem juízo. Os reclusos divertem-se, até que as sentenças são pronunciadas. "Condenado a três anos e quatro meses número 874".

Os actores, de fato de trabalho, t-shirt branca justa ao corpo, calças azuis escuras, sucumbem ao peso das condenações. Caminham resistentes para a revista. Encostam-se à parede, braços no ar, pernas afastadas. O feirante, o homem que representa o sistema, entra com o megafone na mão, a balbuciar coisas que não se entendem. Usa a caneta para escrever o número nas mãos dos presos.

Mais à frente, escuta-se o som do acordeão, ouve-se um tango. Dois grupos de reclusos enfrentam-se, cruzam olhares de ameaça e agressividade. Momentos tensos, da escolha do grupo, do clã dentro da prisão. Entra-se no corredor principal, e há pequenas performances a acontecer. Um homem dobra camisas na lavandaria e recita Shakespeare: "Como fede o meu crime, o seu cheiro chega até ao céu".

Na biblioteca, constroem-se pássaros de papel (e mil pássaros são necessários para pedir a liberdade). Na capela só podem entrar os pecadores. Os homens estão adormecidos. Acordam e vestem as camisas brancas passadas a ferro, é o momento da saída. Não há palavras, apenas cantos gregorianos do coro Ala dos Afinados, projecto desenvolvido na prisão pelo serviço educativo da Casa da Música.

Mais do que um espectáculo, "Entrado" é um embrião de um grupo de teatro na prisão. Nuno Jesus, vocalista da banda de Custóias, acredita que "é uma mais-valia para a cadeia": "Abre portas, ajuda a não perdermos a auto-estima e o valor que cada um tem. E, desta forma, as pessoas ficam com noção da realidade da cadeia, do que se faz cá".

Rui Velho é o preso que encarna a personagem que lê o código penal. "Ganhamos um bocado de confiança e é bom para a nossa integração. Dentro do mal que estamos, tentamos arranjar alguma coisa de positivo. Está aqui um trabalho de muito empenho", garante.

Francisco Alves acrescenta: "Vivemos todos os dias nesta cadeia, quer queiramos quer não. Mas também queremos demonstrar que nem só os criminosos têm lugar cá dentro, que ninguém está livre de vir para cá".

Hugo Cruz, o encenador, sublinha que o enredo foi criado pelos presos. "'Entrado' partiu das histórias de vida dos reclusos, das suas memórias. E a história é a entrada, o estar na prisão e uma saída. É perceber que qualquer um de nós pode, eventualmente, estar ali".

Sentido de comunidade
O Imaginarius nasce da vontade de apostar numa área das artes perfomativas inexplorada no país. A Câmara de Santa Maria da Feira decidiu arriscar e deu-se bem: tirou o teatro das salas, contratou algumas das melhores companhias da Europa, apropriou-se do espaço público, e o público agradeceu a oferta e o acesso, totalmente gratuito, a espectáculos inéditos em Portugal. O país depressa soube do que se passava ali, naquela cidade entre Porto e Aveiro. Os espectáculos não passavam despercebidos. Não podiam.

A artista plástica Joana Vasconcelos teve mais de mil mulheres a trabalhar numa colcha de croché gigante que "vestiu" o castelo da cidade. O criador da polémica campanha da Benetton, Oliviero Toscani, andou a fotografar burros em Miranda do Douro para uma exposição que habitou uma praça.

La Fura dels Baus recrutou um grupo de aspirantes a actores para uma teia humana pensada propositadamente para o Imaginarius. A coreógrafa Clara Andermatt trabalhou com um grupo de idosos. A comunidade local não tem ficado de fora.

Este ano, há seis novas criações e várias companhias nacionais e europeias a ocupar a Feira. Clara Andermatt regressa para apresentar uma adaptação de "Void" para o espaço público. O Teatro de Marionetas do Porto apresenta "Make Love Not War", a partir da "Lisístrata" de Aristófanes, sobre as mulheres que fazem greve de sexo enquanto os homens não pararem de combater.

O espanhol Leo Bassi também está de volta com "Utopia" e a companhia francesa Off encerra o festival com uma performance circulante, "Les Roues de Couleur". E há espectáculos que activam quase militantemente o sentido de comunidade, como "A Feliz Idade" e "Romeu e Julieta".

"A cada edição, o Imaginarius tem de encontrar motivos para existir, numa relação próxima com o território", explica Renzo Barsotti, que assume desde a primeira hora a direcção artística do Imaginarius.

Pensar, mostrar, fazer pensar: "Há uma aposta forte na criação própria e no envolvimento da comunidade. Um festival tem de ser uma oportunidade para conectar as maiores forças de uma comunidade ao longo do ano".

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