Kazuo Ohno, o homem árvore



1906-2010

por Tiago Bartolomeu Costa
03.06.2010


Foi aos 95 anos que deixou os palcos. Durante mais de 50, este bailarino e coreógrafo japonês marcou a dança que se fez no Japão e no mundo, alcançando um patamar de excelência que nunca o rotulou como "exótico".

Kazuo Ohno foi sempre contemporâneo. A sua obra morre com ele.

O corpo estava frágil e já há uns anos que vivia acamado, depois de outros tantos em cadeira de rodas mas, ainda assim, a dançar, como na festa do seu 99.º aniversário, carregado ao colo pelo filho, Yoshito Ohno. Dois anos antes, em 2004, tinha anunciado o abandono dos palcos, mas a sua energia, contudo, não acabava. Kazuo Ohno faria 104 anos a 27 de Outubro, mas o corpo do bailarino e coreógrafo, que um dia disseram ser "uma árvore", cedeu.

Tal como com Merce Cunningham e Pina Bausch, desaparecidos recentemente, a morte do bailarino japonês deixa ainda mais vazia a frente revolucionária da dança mundial.

O encenador japonês Toshiki Okada, que está esta semana em Lisboa para apresentar uma peça no Alkantara Festival (ver Ípsilon amanhã), diz que Ohno deve ser entendido não como exemplo de representação da dança japonesa mas como "uma pessoa de extraordinária singularidade, cuja influência ainda se sente hoje, não de forma evidente para um olhar exterior, mas num plano mais profundo, mais íntimo e individual".

Okada, 35 anos, viu Ohno dançar quando tinha 19 anos e recorda-se, em particular, da sua capacidade de "tocar profundamente, mesmo se esticasse apenas o seu braço".

É essa simplicidade, adquirida com anos de formação, que singularizou Ohno e fez dele uma das maiores referências mundiais da criação contemporânea.

Diz-se que um bailarino deve iniciar o seu percurso cedo, mas Ohno começou apenas aos 43 anos, depois de ter sido professor de Educação Física e soldado, acabando como prisioneiro de guerra na Nova Guiné.

Efeito sísmico
Foram as performances que fez nos anos 60, na sequência de uma deriva criativa protagonizada por uma geração reactiva à presença norte-americana na ilha, "que produziram um efeito sísmico no mundo da dança japonês, colaborando regularmente com Tatsumi Hijikata, outra figura de particular peso na vanguarda japonesa", escreveu John Barret na revista alemã Ballettanz.

É Hijikata que, em 1977, assina a encenação de La Argentina Sho, o primeiro espectáculo de Ohno, amplamente influenciado pelas memórias que guardava de uma apresentação, 51 anos antes, de Antonia "La Argentina" Merce, "a rainha das castanholas", que, no início do século XX, transformara a dança espanhola.

Também Kazuo Ohno transformou a dança no Japão e não apenas no campo específico do butô (que significa "baixo").

Em 1980, quando Ohno chega à Europa com Admiring La Argentina, é uma nova dança europeia "muito aberta a outras influências, linguagens e técnicas" que o recebe.

Quem o diz é Maria José Fazenda, antropóloga e professora na Escola Superior de Dança, que salienta três aspectos fundamentais que encontram em Ohno o expoente máximo "de um novo género performático", a começar pelo prolongamento de uma tradição de travestismo no teatro japonês, "onde o género não é relevante, mas a criação efectiva de uma personagem que nasce dentro dele".

O seu percurso, e o modo de construção do seu olhar sobre a dança, e o corpo em particular, é devedor de um século complexo ao nível da história japonesa, seja ela militar ou social, onde se pressentem "reflexões sobre o terramoto em Kanto (1923), a Guerra do Pacífico (1937-45), as bombas atómicas de Hiroxima e Nagasáqui, a ocupação americana (1945-51) e os altos e baixos que sucederam ao milagre económico dos anos 60", salientou Barret.

Convocar a morte
Na conferência de imprensa que deu em Julho de 1994, aquando da sua única apresentação em Portugal (Centro Cultural de Belém, em Lisboa), Ohno disse que o butô é "uma dança que valoriza a vida", mas que o faz, inevitavelmente, "convocando a morte, pois não se pode pensar na vida sem pensar na morte". E acrescentou:

"Enquanto algumas pessoas crescem, outras vão morrendo, e é isso que quero mostrar através da minha dança". Esta atitude perante o presente é outro dos aspectos destacados por Maria José Fazenda, numa "incorporação de elementos expressivos da contemporaneidade japonesa".

Ohno "desenvolve uma técnica diferente do princípio euro-americano, ou seja, o surgimento do movimento antes da forma, e uma percepção do funcionamento do corpo, e do trabalho dos órgãos internos", promovendo uma procura "pelo outro que está dentro de nós, esse eu múltiplo que nos habita".

Por fim, diz Fazenda, à data da conferência de Lisboa crítica de dança, o bailarino japonês "despertou um interesse pelo expressionismo alemão num conjunto de criadores", permitindo a integração do discurso coreográfico-teatral de Pina Bausch na definição abrangente de dança contemporânea.

"As suas danças, na esteira da tradição alemã e dos solistas do modernismo, foram criadas pelo coreógrafo para serem interpretadas pelo próprio. Coreógrafo e intérprete ocupam o mesmo lugar biológico, físico e temporal, provocando com isto uma total veracidade de execução", escreveu António Pinto Ribeiro, ensaísta e programador, em Dança Temporariamente Contemporânea, de 1994, o ano da apresentação em Portugal de duas das peças: Water Lilies e Flowers-Birds-Wind-Moon.

"Os corpos na dança de Ohno recuperam a verticalidade, mesmo quando a energia contida que os faz mover lenta e silenciosamente os puxa para a terra", escreveu na altura Maria José Fazenda.

Ohno reflectia na conferência de imprensa sobre a continuidade do seu trabalho: "Como é que eu posso dançar, como é que eu posso exprimir certas coisas se cada vez tenho menos força e menos energia? Mas sou capaz, porque sei que não estou sozinho, dentro de mim habita a minha família que me dá a força que necessito."

Em Ohno, escreveu Pinto Ribeiro, "estávamos perante o paradoxo da obra inacabada. Só a morte terminará este processo de reescrita e arquivará esta dança em determinado desenho epocal e de circunstância".

A árvore muda deixou de florir a poucos meses de completar 104 anos.
Kazuo Ohno esteve em Lisboa em 1994. Na conferência de imprensa no Centro Cultural de Belém disse: " [O butô] é uma dança que valoriza a vida", mas que o faz "convocando a morte, pois não se pode pensar na vida sem pensar na morte". http://ipsilon


Livro


Kazuo Ohno, Vários Autores

Editora Cosac & Naify. 2003

Em 80, no Festival de Nancy (França), Antunes Filho, que estava lá para apresentar seu "Macunaíma", interessou-se em ver a primeira apresentação ocidental de Kazuo Ohno, em seu espetáculo de butô, até então um conceito desconhecido, entre teatro e dança. Segundo as palavras de Antunes, "as portas do inefável se abriam para mim".

Tecido de memórias, tendo a morte como pano de fundo, o butô é muito mais uma visão do universo do que uma técnica formal, apesar da proliferação de "escolas de butô" que se seguiram a partir do momento em que o Sesc Consolação trouxe para o Brasil o espetáculo visto por Antunes, "Admirando la Argentina", em 86.

Ohno viria mais três vezes ao Brasil e, em todas elas, deixou marcas profundas, inclusive em criadores como Tomie Ohtake e Ivaldo Bertazzo. O livro da Cosac & Naify documenta essas passagens, sobretudo através das fotografias de Emidio Luisi.

A rigor, bastariam as imagens: o movimento explicado por si, pelo registro da sensível câmera de Luisi e encadernadas com paixão em um processo semi-artesanal, em papel raro e tiragem limitada. Mas a organizadora e crítica da Folha Inês Bogéa, melhor do que tentar expressar o inefável em explicações redutoras, quis registrar a arte de Ohno através das impressões dos que se iluminaram com ele, além de traçar, na abertura do volume, a trajetória do butô e de seu criador.

O que se revela, portanto, em textos e imagens, é mais o processo e sua recepção do que um espetáculo-produto. Bogéa, contagiada pela simplicidade e ternura de Ohno, é precisa e envolvente em sua definição do butô (apontando influências de Isadora Duncan e do expressionismo alemão) que Ohno concebe em conjunto com Tatsumi Hijikata a partir de 1960, seguida pelo registro cronológico das obras, e passa rapidamente a palavra ao próprio Ohno, através de importantes entrevistas.

Nelas, Ohno evoca suas memórias, matéria-prima de seus espetáculos - sobretudo, as lembranças de sua mãe-, festeja a parceria com seu filho Yoshito (que também aparece nas fotos) e compartilha conceitos importantes, como a semelhança entre o butô e o bunraku, tradicional teatro de bonecos: assim como a roupa do boneco dá vida ao corpo de madeira, o que dá vida ao corpo do bailarino é o universo que o circunda.

Os depoimentos que se seguem, de Antunes Filho (que é muito revelador da estética do próprio Antunes) e Emidio Luisi consagram um gênio criador sem nenhuma auto-mistificação.

Ohno é um mestre na concepção de Guimarães Rosa, não aquele que ensina sempre, mas "aquele que, de repente, aprende".

Entre outras virtudes, portanto, o livro "Kazuo Ohno" celebra a criação artística como uma experiência vital, sem garantias de resultados definitivos, mas em eterna transformação, no inefável e na memória. (FSP - 12.4.2003)