Filomena Marona Beja: "Doeu escrever Bute daí, Zé!"



Depois de ter ganho o Grande Prémio de Romance e Novela APE/DGLB 2007 com «A Cova do Lagarto», Filomena Marona Beja está de regresso com «Bute daí, Zé!», editado pela Sextante.

Por Pedro Justino Alves

Felizmente! Numa escrita muito própria, a autora recorda como ninguém as ilusões e desilusões do 25 de Abril de 1974, num livro que certamente ficará como um das referências deste período. Através de múltiplas vozes, um retrato fiel de uma geração.

«Não havia semana que não chegasse alguém do estrangeiro. Entrevistava, gravavam. Fizeram documentários, publicaram livros. Desenhos, no Canard Enchainé. As eleições para a Constituinte. E o Verão avançou. À Casa das Palmeiras chegou um brasileiro chamado Lula. Sindicalista. Representava a organização dos trabalhadores mais pobres da América do Sul. Vinha por solidariedade. Cruzou-se com Jan-Birket, sindicalista dinamarquês.

Logo se organizou um debate. Perspectivas para Portugal: Socialismo ou regresso ao fascismo. Do percurso de Lula, a maioria dos presentes viveu para saber. De Birker ficou o aviso: «Os trabalhadores nórdicos são cada vez mais pressionados pela social-democracia. Uma forma de exploração que os transforma em simples máquinas, pagando-lhes o suficiente para terem mais um automóvel, ou mais um frigorífico. Dando-lhes a ilusão de que gozam de Liberdade.»

Liberdade, mas principalmente esperança, ilusão e… desilusão. Estas são as palavras que trespassam o novo livro de Filomena Marona Beja, que admite que «doeu» escrever «Bute daí, Zé!», uma obra que reflecte no fundo parte da sua geração, já que, em 1974, tinha 30 anos. Ou seja, viveu o que escreveu. Daí a dor…

Filomena Marona Beja acredita que o 25 de Abril não falhou, apesar de tudo. E mesmo que tivesse falhado, a alegria que sentiu na altura bastaria para justificar a vivência daqueles loucos dias, como a própria confessou.

O seu livro aborda muito da ilusão e da desilusão que foi o 25 de Abril. Tinha, na altura, 30 anos. O que foi em concreto o 25 de Abril para si? O que recorda desse período?

A Liberdade que sempre tinha desejado. Uma alegria que ninguém poderá roubar-me. Foi um período de Festa. Os cravos, as canções, o riso. Os militares de que, até então, nós tínhamos duvidado, propunham-nos um novo conceito de País, de vida. Acreditámos. E foi muito bom acreditar.

Mas como viveu na altura os muitos sonhos e esperanças que reflecte o livro?

Como quase toda a gente. Indo para a rua, participando em reuniões, discussões, reivindicações. Aqui! Já!

No seu entender, onde falhou o 25 de Abril, se é que falhou? E, além da liberdade, o que trouxe para o país?

Falhar? Não falhou. Mas a alegria de tantos, foi o fim dos privilégios de alguns. Partilhar, era coisa que não agradou a todos. De princípio, fizeram por não dar nas vistas, mas foram minando, contrariando. Voltaram, em força. Por outro lado, os mais novos lançaram-se na vida como se tudo lhes fosse devido. Não aprenderam a ser iguais. Estavam no centro do Mundo e não sabiam que a liberdade de cada um termina quando começa a pôr em causa a dos outros.

Doeu escrever este livro?

Bastante.

Norman Manea escreveu no seu mais recente livro editado entre nós, «O Regresso do Hooligan», o seguinte: «Sim, a intensidade do instante, a vida com a duração de um instante.» Acredita que este era o espírito do 25 de Abril?

Não seria! O que nos propunham era uma vida inteira, realizando, indo mais longe. Felizmente, há ainda quem teime em cumprir este propósito. Mas os que só dispuseram de um instante que, pelo menos, tenham sido sinceros enquanto durou.

Em termos de escrita, estamos perante um livro que não permite pausas. É como se estivéssemos debaixo d´água, sem fôlego, já que o ritmo de leitura é realmente impressionante. Foi complicado escrever «Bute daí, Zé!»?

Informei-me. Investiguei. Rebobinei muitas memórias. É um método que sigo sempre que escrevo, mesmo quando se trata de textos curtos. Depois, é o tecer do livro e isso dá sempre trabalho. E gosto.

Mesmo os personagens surgem de forma pouco aprofundada em termos psicológicos e de carácter, o que não é natural na literatura. Na minha opinião acabam por ser meros passageiros de um tempo? Concorda?

Não concordo que sejam psicologicamente pouco aprofundados. Passageiros do tempo? Como em tudo na vida, alguns foram. Mas nem todos. Por exemplo: a tia Lucy que surge logo ao princípio com dólares na mão e sai com um copo de champanhe embrulhado nas mesmas notas. O primo Pereira e o seu amigo Miguel Verdial. E o Boaventura, de Ourilhe? Para não referir outros, ainda mais evidentes. Passageiros do tempo? Todos acabamos por o ser.

Como analisa esta obra em comparação com as suas anteriores em termos de maturidade na escrita?

Entre a publicação de cada obra há sempre um decorrer de tempo e experiências. É inevitável que vá acontecendo um amadurecimento interior. E na minha idade, pode-se, ainda, fazer alguma loucura. Mas já não se desaprende.

Porque decidiu terminar o livro precisamente na morte de José Carvalho? Alguma razão especial?

Todos nós, os daquele tempo, éramos um pouco o Zé Carvalho. Povo que saía à rua, era solidário com os seus companheiros. Daria tudo por eles. Cada um de nós podia ter levado uma facada. Ter caído ao fundo de um beco. Todos nós nos podemos ainda levantar. Ele já não. Mas saber o que aconteceu é fundamental para que se possa ter alguma esperança.

A sua morte foi um dos períodos mais negros do pós-25 de Abril? Considera ser o acto em si a negação da própria revolução?

Não um período, propriamente. Mas dir-se-ia que foi um acto para que não estávamos prevenidos. No entanto, eles rondavam. Atacavam. Escondem-se, por vezes. Mas continuam a andar com facas nas algibeiras.

Quando terminamos o livro fica um sentimento de vazio, pois claramente a história clama pelos nossos dias. Poderemos esperar por uma segunda parte?

É… acabar um livro é perder qualquer coisa. Mas segundas ou terceiras partes não significa dizer mais ou melhor. Tenho a intenção de continuar a escrever. A escrita, afinal, é uma espécie de dentada de cão: só sara, aplicando-lhe pêlo de outro cão. É isso que vou fazer.

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