Uma montagem de Alvis Hermanis, da Letônia



Por Ana Dias Cordeiro
17.03.2010

Nostalgia e melancolia: o regresso de um homem, Wilkor, à casa e às meninas do seu passado. A passagem do tempo pode ser tão absurda e dolorosa como a guerra. Ambas nos aproximam da morte. Um homem e seis mulheres. Quinze anos passados e um reencontro que, pela aparente ligeireza das personagens, podia ser fortuito.

Como se nada unisse este homem, Wiktor Ruben, e estas mulheres, na peça "As meninas de Wilko", encenada pelo letão Alvis Hermanis.

Como se as idas de Wiktor a Wilko - e a sua própria existência - não tivessem deixado rasto: "Estava convencido que tinha passado por Wilko como uma sombra. (...) Pensei que ninguém aqui se lembrasse de mim", diz quando chega.

Afinal não. A inconsistência da vida, e da sua vida em particular, não chegaria a esse ponto. "Estavas enganado", diz-lhe Jola, antes de deixar a irmã Zosia completar: "Aqui em Wilko tornaste-te uma lenda."

Wilko, onde Wiktor passou alguns verões da sua juventude, era o nome da casa onde cresceram as seis irmãs, mais novas que ele. Quinze anos passados, umas estão casadas, outras separadas, com ou sem filhos, e neste dia reuniram-se ocasionalmente como o fazem habitualmente nas férias. "Íamos agora para a mesa. Jantas conosco, não é verdade?", diz Kazia.

Sentam-se a uma mesa comprida, algumas de costas para o público, como seria se estivessem em casa. E estão.
No palco acumulam-se mobília, roupa e objectos de tal forma reais que o cenário se transforma num espaço concreto e imenso, onde caberia toda uma casa, a das seis irmãs, e toda uma história, a de Wiktor, vítima da guerra e de si próprio.

Apenas fragmentos e sensações da sua existência são dados a conhecer, neste texto adaptado do romance do polaco Jaroslaw Iwaszkiewicz (1894-1980), "As meninas de Wilko", que o encenador da Letónia, Alvis Hermanis, pôs em cena para a companhia de teatro italiana de Modena, a Emilia Romagna Teatro Fondazione.

A peça estreou em Itália em Janeiro no quadro de um projecto de cooperação cultural entre seis cidades europeias. Além de Modena (Itália), Rennes (França), Liège (Bélgica), Tampere (Finlândia) e Berlim (Alemanha), inclui-se Lisboa e o CCB.

A idade de um país
O objectivo do encenador era transmitir a poesia da obra, explicou em entrevistas, Alvis Hermanis, 44 anos, para quem a memória e a passagem do tempo são o tema central desta peça e do seu trabalho em geral.

Interessam-lhe a melancolia e a nostalgia, não apenas como elementos melodramáticos mas como "qualidades que caracterizaram sempre a consciência cultural da Europa, ou pelo menos como era até aos finais do séc. XX", escreveu o encenador sobre o romance.

A Letónia de hoje, na União Europeia desde 2004, não pode dissociar-se da Letónia ocupada por Moscou e parte da União Soviética durante meio século. Os idosos do seu país serão quem melhor reflecte essas duas realidades.

Pelo menos, é neles que pensa quando fala na história recente da Letónia, no impacto das reformas da União Europeia, de controlar gastos do Estado e cortar ajudas sociais. Os idosos da Letónia "estão a viver na extrema pobreza, escondidos, quase invisíveis na sociedade".

É neles que pensa quando diz que, em teatro, é mais fascinante representar os idosos do que os jovens. "A vida de um ser humano é demasiado longa. Essencialmente é uma luta contra o tédio", ouvimo-lo dizer no documentário "Larger than Life".

E compreende-se melhor Viktor, não idoso mas marcado pela idade, quando Alvis Hermanis, numa entrevista, confessa: "A maior dificuldade para mim é combater a minha inércia."

Hermanis cria um teatro que junta realismo social e fantasia, parco em palavras ou totalmente mudo, como que transpondo para o palco o silêncio da era comunista e mistura influências do teatro russo (mais emocional) e do teatro alemão (mais intelectual).

Estudou no seu país, onde hoje é director artístico do New Riga Theatre. Venceu vários prémios e levou as suas peças a festivais internacionais. Esteve no ano passado em Lisboa onde apresentou "Sónia", de Tatiana Tolstaya, no Teatro Maria Matos.

Tempo e memória
O encenador encontrou no romance de Iwaszkiewicz os traços do tempo e da memória que o fascinam. Mas não só. O livro fala também de guerra, amores não correspondidos e a saudade de uma idade - a juventude - em que ainda há sonhos e ambição.

Para criar as imagens poéticas do romance original, actores e encenador jogaram, nos primeiros ensaios, com a improvisação. "Improvisação, com muita disciplina" que desembocou depois numa "forma muito precisa", trabalhada em detalhe em cada ensaio, diz Sérgio Romano numa entrevista por telefone a poucos dias de viajar para Lisboa.

Este actor que é Wiktor, o único homem da peça, congratula-se pela oportunidade de trabalhar com Alvis Hermanis. Não falar a mesma língua (o encenador é letão, os actores são italianos) exige a busca de novas formas de comunicação, sem palavras, e essas apelam mais aos sentidos e à vida interior das personagens, explica.

Nesta peça, os actores ora são personagens, ora personagens e narradores das suas próprias histórias. Como se narrar o passado fosse menos doloroso do que encará-lo. Quando, no início, Wiktor fala de si próprio, o monólogo é distanciado e impessoal.

Mergulhado na monotonia do trabalho diário desde que voltou da guerra, Wiktor não tinha tempo para reflectir, diz. E ainda bem, porque os 40 anos de vida ensinaram-lhe que reflectir não leva a nada.

Sentimentos em suspenso
Tomado por uma crise de meia-idade, atormentado pelas insónias, segue o conselho do médico e decide parar e tirar férias. É assim que Wiktor, o narrador, explica como Wiktor, a personagem, chega a Wilko e reencontra as irmãs (Laura Marinoni, Patrizia Punzo, Elena Arvigo, Irene Petris, Fabrizia sacchi e Alice Torriani).

Interiormente, continuam como jovens raparigas, mas num corpo de mulher, também elas mais velhas. Cada uma tem a sua relação muito singular - com contradições, ambiguidades e expressões sensuais - com Wiktor. Mas por falta de acção, os sentimentos ficaram em suspenso.

"Wiktor é um homem muito narcísico, inseguro, tímido, fechado sobre si mesmo, preocupado com a sua vida", diz Sérgio Romano. "Mas tudo isso denota também uma certa sensibilidade. Ele toma consciência do que fez mal no passado, daquilo de que se arrepende."

Porém não muda. Limita-se a constatar como tudo está na mesma, apenas o corpo mudou. E sem interesse de redenção por si próprio, pela sua vida, mantém a inércia dúbia e indolor de quem não suportaria ir ao fundo de si mesmo.

Mais velho e apagado, depara-se com o que poderia ter sido, a memória de um tempo em que as suas escolhas tinham leveza - só depois se tornaram irreversíveis.

"Não faço nada de importante", responde quando uma das irmãs pergunta que caminho tomou a sua vida nos quinze anos em que andou desaparecido. "Não vale a pena falar de mim, vivo como toda a gente." Vê-se como alguém banal, sem importância. E fala da guerra.

O actor Sérgio Romano dedicou-se a dar humanidade a esse homem "que não tem um lado só negativo" e a transmitir essa dimensão da consequência da guerra sobre a vida masculina, a forma como a impossibilita, fecha portas.

Na peça, o mundo masculino - que produziu guerra, destruição e morte - vai confrontar-se com esse mundo feminino que não ficou imune à violência.

Wiktor tem medo das decisões, tem medo de tudo, de si próprio, como lhe diz Zosia, em cena. Mas Wiktor, para quem todas as coisas são inalcançáveis, "não é maquiavélico, não é hipócrita", considera Romano. "Wiktor é sincero. E uma vítima de si próprio."
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