Isto era um Império, um livro-monumento


Por João Bonifácio
14.05.2010

É o primeiro romance "tout court" de Pedro Rosa Mendes e é um monumento. A investigação sobre o desaparecimento de um jovem indonésio em Timor transforma-se num requiem pelos restos do Império visto pelo outro lado, o dos colonizados. Extraordinário.

Não é apenas um romance, é um acontecimento.
"Peregrinação de Enmanuel Jhesus" é possivelmente o primeiro romance de Pedro Rosa Mendes, e para primeiro romance não se podia pedir mais: é um extraordinário "tour de force" que, centrando-se em apenas 20 e poucos anos de história recente de Timor-Leste, abre os braços e alcança 500 anos de destino.

Dizemos que "Peregrinação de Enmanuel Jhesus" é possivelmente o primeiro romance de Pedro Rosa Mendes porque em 2003 houve "Baía dos Tigres", que os críticos não souberam como classificar.

Supostamente, esta é a narrativa de Alor, um jovem arquitecto indonésio filho de militar que desaparece depois de desenhar a casa do futuro chefe timorense. Na realidade, a narrativa é fragmentada e dos estilhaços surgem as ruínas do Império português na sua ponta mais longínqua.

Antes de mais: finalmente não há dúvidas, este é um romance.
É discutível o "finalmente". Com "Baía dos Tigres", o editor só à terceira ou quarta edição tirou o "romance" da capa. Passou a ser assumidamente uma viagem às cegas.

Havia algum desconforto naquele "romance", mas eu continuo a achar que era um romance. Só que a viagem verdadeira, de recolha de material, que deu origem ao livro, estava muito presente no romance. Para mim hoje é óbvio que as melhores páginas desse livro são as que descolam da realidade.

Agora sim, neste romance eu não conheço ninguém que corresponda integralmente, por exemplo, ao Dalboekerk, que acaba por ser a voz central do livro. Mas por mais delirante que possa ser o que eles dizem ou fazem, é tudo pensado num contexto muito forte de verosimilhança - não podemos esperar que a voz de um militar indonésio seja a mesma de, digamos, o Padre Vítor Melícias.

A voz de um indonésio tem de ter uma âncora real, e de facto existiu gente que, como Dalboekerk, achou que a violência era justificada. Desconfio que o "finalmente é romance" tem a ver não com a ausência de romance no primeiro livro, mas sim com a minha ausência neste.

Viveu em Timor como correspondente - quando é que saiu e o que é que escreveu lá?

Saí sensivelmente há um ano, no final de abril - e foi quando saí que comecei realmente a escrever. As últimas semanas em Díli serviram-me para ter conversas que nunca tinha tido e para fazer duas viagens ao Matebian - que não é a montanha mais alta, mas é uma cordilheira muito importante.

Não serve propriamente para escalada, não há estradas, não há sítios para repouso, e desde 78, desde a derrota das forças timorenses face aos indonésios, esteve sempre habitada. Tem 30 quilómetros de comprimento e leva-se três dias a atravessar de um lado ao outro - fisicamente é muito exigente.

Como é um lugar muito isolado, acaba por tornar-se uma cápsula para perceber o que Timor foi perdendo. Tornou-se a âncora do romance. Mas não escrevi uma vírgula enquanto estive lá. As coisas estavam muito maduras em termos do que eu queria fazer: os momentos históricos de 1999 e o "flashback" da invasão indonésia de 1975.

Bem como a história central do livro, que é o mais importante: os processos de invenção das várias identidades timorenses. Que é o que acontece ao Alor, um filho de vários deuses que magnetiza o sonho de muita gente e de quem vimos mais tarde a saber que não vem de onde pensávamos que vinha - isso aconteceu a milhares de timorenses. E isso estava definido desde o início. A partir daí foi uma questão de tempo: isolei-me nessa Primavera e aí foi tudo muito intenso.

A questão da identidade: é mencionada por várias personagens uma certa permeabilidade timorense às aculturações, e o povo surge sempre como que envolto numa espécie de promiscuidade mitológica...

É preciso realçar que aquilo que o Dalboekerk ou o padre Belteran ou o Matarufa dizem são leituras muito pessoais, no sentido de pertencerem às suas personagens. Este é um ponto que quero sublinhar: poucas vezes eu permito a algum dos personagens falar por mim.

Eu parti para o romance livre das minhas opiniões sobre Timor. Em relação a essa "permeabilidade"... Essa questão é interessante porque, apesar de as personagens falarem nisso, uma das constatações da literatura antropológica sobre Timor - que entra em colisão com "a causa-Timor" - é a grande impermeabilidade da identidade timorense, a sua grande resistência ao que vem de fora.

Timor é rota de passagem há muitos séculos - os chineses andaram lá muito antes de nós -, mas manteve-se refractário, à margem das vagas de aculturação que varreram o império, fossem as hindus, as islâmicas ou as europeias.

Há razões para isto: Timor é uma realidade topográfica muito forte, é a única daquelas ilhas que não é de origem vulcânica, e foi ficando isolada. Até ao fim da colonização portuguesa, o número de quilómetros de estrada asfaltada era deprimente - o que é recorrentemente apelidado pelos australianos de "colonização indigente".

Mas a questão identitária é mais funda: eu tenho dúvidas que, do ponto de vista histórico, haja um povo de Timor. Isso é um artifício. Há povos de Timor, que viveram num deve e haver constante de soberania e vassalagem.

Essa "Fragmentação" dos povos está muito presente no livro: as personagens identificam-se como sendo de um sítio, de um clã, de uma família, como se os outros sítios, os outros clãs, as outras famílias fossem em termos culturais radicalmente diferentes.

A grandeza de Timor é entrópica. Timor é mais ou menos do tamanho do Alentejo e as suas grandezas expandem-se, no sentido em que funcionam porque são operativas. Funcionam quando se está lá.

A dimensão do resto do mundo é remetida a um lugar secundário - esta metade da ilha pensa muito pouco o mundo exterior. A grandeza vem também da topografia - o que explica a conflitualidade, porque há conceitos de distância que aumentam o espaço interior de Timor.

E há outras coisas: em Timor o que há mais são clãs, entidades que obedecem à divisão da ilha - o que a actual geografia política tem dificuldade em entender. Sem perceber isto não se percebem certos fenómenos de rivalidade e de pertença.

Por exemplo, Wehali nunca foi uma entidade política. É uma espécie de V Império timorense. Há um livro do Tom Therik ["Wehali - The Female Land"] que fala da força que pode ter um certo tipo de soberania mítica e espiritual.

O poder de Wehali não dependia de um poderio militar, que nunca teve, mas sim de uma soberania mítica.

No livro é como se cada personagem, até a mais secundária, tivesse uma cartografia mental própria e as diferentes cartografias se sobrepusessem e expandissem aquele território e o tornassem uma terra mítica primordial.

Sim. Quem vem de um quadro mental cartesiano não entende o quadro mental timorense - isso só é possível vivendo lá. Em Timor, a pertença de um indivíduo a um clã não se reporta a uma linhagem de sangue, mas sim a uma narrativa.

Em ocasiões muito raras de sacralização, o indivíduo ouve e repete a narrativa, contada pelos mais velhos, que vai do primeiro antepassado, mítico, até ao contemporâneo.

É uma espécie de retorno da memória, é constante e é um dos sentidos dessa cartografia. Tive a honra de assistir a uma dessas ocasiões. A narrativa torna-se uma entidade mítica que aglutina e dá sentido.

No livro isso é notório - pela forma como constantemente se passa de um micro para um macrocosmos, de uma narrativa individual para uma quase ontologia de cada ser ou de todo o povo.

Isso acontece porque há uma grande contemporaneidade dos tempos passados, uma presença constante dos antepassados. Todos os que vieram antes estão presentes - hoje diz-se que em Timor há culto dos mortos por causa dos massacres, o que é falso, esse culto já vem de trás.

Por um lado há essa presença ritualizada dos antepassados, por outro há uma impossibilidade de curar a violência passada. Há século e meio que a sociedade timorense não tem tempo para esquecer o sofrimento passado.

Há uma presença do trauma, da vingança - a diferentes níveis, o passado não passou. Há cerca de um ano e meio houve uma iniciativa de paz entre quatro aldeias em Viqueque. Isto mobilizou durante dois dias vários membros do Governo, dezenas de observadores, gente da ONU.

Era uma negociação ritualizada e o assunto, sabes o que era? A morte de um cão em 75. E a morte de um cão em 75 pode vir a ser a morte de um homem em 99.

Essa fragmentação social de que fala é que o levou a fazer o livro num registo polifónico, com várias vozes a avançar e a recuar no tempo?

A polifonia impôs-se desde o início. A polifonia é daquele espaço, é aquele espaço. Há um princípio que tenho e que vem do jornalismo, que é cortar o que não interessa: as vozes que há são as vozes estritamente necessárias para a dramaturgia.
Tal como na "Baía dos Tigres", a polifonia foi uma imposição da realidade. E é uma imposição da boa literatura: eu não devo assenhorinhar-me do papel do narrador.

Mas há personagens que são fundamentais para perceber a história de Alor e outras que apenas são usadas para contar as múltiplas tragédias de Timor.

O Bupati Gonçalves, a Wallacea, o Gloria Suprema são personagens instrumentais, servem a narrativa. Os outros não: o Alor caiu ali por causa deles. Vivem ali uma loucura política, como o Dalboekerk, ou em transcendência. Todos eles vivem assim, a sonhar com um tempo para lá de hoje.

O Dalboekerk sonha com um futuro que no fundo é um regresso ao séc. XVI, e nenhum deles vive exclusivamente no presente. E isto é verdade ali: há, por exemplo, pessoas que sonham com um estado cristão e dizem que estão a trabalhar para daqui a 20, 50, cem anos. A forma como se colocam estas pessoas à volta do Alor é muito autêntica, foi o que eu li na realidade mental das pessoas que conheci.

O Dalboekerk, como disse, acaba por ser a voz principal - tem uma visão terrível da colonização portuguesa. Diz que foi "juntar a fome à vontade de foder".

Sabendo qual é o ADN dele, há duas razões para ele dizer isso: a) a escala; b) a história. Custa-nos imenso, a nós portugueses, porque continuamos no labirinto da saudade, aceitar a nossa escala, aceitar que somos um país com dez milhões de pessoas, que não teve revolução industrial; uma potência sem potência, demográfica, militar e economicamente débil.

A Indonésia tem 220 milhões. Só contando com Java são 180 milhões de pessoas. Há uma incapacidade portuguesa em perceber o desprezo indonésio por Portugal. O que eu no fundo fiz foi um livrito sobre Portugal.

Não me pus a repetir o que nós pensamos sobre Portugal, antes escrevi o que os outros pensam sobre Portugal. Do ponto de vista de Java, que não tem complexos com a história - a sua cultura é tão poderosa que integra todas as vagas culturais que por lá passaram.

Uma coisa curiosa é que a transcendência de que falou a propósito de Dalboekerk não deixa de ser uma espécie de pragmatismo ontológico: ele acredita que num fim a vir a sua pátria será glorificada.

São essas as coordenadas mentais deles. A prateleira bibliográfica que juntei para criar Dalboekerk é muito vasta, porque a cultura javanesa é muito vasta, desde as artes marciais à pintura. Em contraste, a pequenez de Timor é imprescindível à falsa grandeza portuguesa.

Nós podemos conservar algo lá - o que é aceitável -, mas fazemo-lo sem exigência. Isso é muito comum aos portugueses e aos timorenses: a ausência de uma cultura de exigência.

Este romance é um caso curioso de romance de ideias com romance de aventura com tragédia em fundo. Como é que trabalhou esse equilíbrio?

O lado do romance de ideias não foi intencional. Talvez aconteça que, quando invento uma acção, os sedimentos de cada indivíduo estão muito presentes, o que resulta num romance de ideias. De qualquer forma, é impossível entender o que é que um militar indonésio pensa sem perceber a cultura que o cria. Há um sentido ontológico na cultura javanesa que tinha de estar presente.

Daí a necessidade de criar personagens eruditas?

Nem todas. Ninguém dirá que Wallacea é erudita. O Dalboekerk sim, tinha de ser uma figura erudita, por forma a aventurar-se numa leitura moral da história. Não é possível fazer uma viagem moral até ao fim da noite sem uma grande erudição.

Isso é algo que eu queria, sim, mas por ancoragem moral - aquela erudição é necessária.

O interessante é a forma como usa a erudição - em diálogo. Acha que o livro pode tornar-se intransponível para o leitor? Não é todos os dias que numa discussão se argumenta recorrendo a Flávio Josefo.

Se eu achasse que o livro estava coxo por esse lado não o tinha deixado imprimir. O que eu tentei foi procurar inteligibilidade linha a linha. Procurei uma grande fluidez, até dramática. Tenho noção - e muito orgulho disso - da quantidade e da complexidade de conceitos, e do léxico que é convocado.

Mas esses conceitos e esse léxico fazem parte do arquipélago, fazem parte daquele tipo de gente.

Virando o bico ao prego: não teve receio de usar a erudição de forma, digamos, pedagógica?

Nunca me ocorreu ser pedagógico. Não há urgência de ensinar nada a ninguém. Houve uma urgência, sim, de contar algo de novo. Quis de facto contar uma história da outra banda, só isso.

Este Alor podia ser uma pessoa retirada da vida?

É a personagem mais inventada do livro - não me baseei em nenhum jovem que desapareceu para o criar. Mas a experiência traumática do Alor, de desenraizamento, é a experiência de muitos timorenses, e eu conheci alguns: o católico é levado para o lado muçulmano, o civil é levado para a polícia, etc. É um desenraizamento que é de uma violência brutal e que conduz a uma espécie de "anunciação" tardia da verdadeira identidade.

Alor tem todas as qualidades, todos o desejam para seu líder, vêm nele a reencarnação de um Deus. É quase um super-homem.

Não é um super-homem. É um super-filho, preparado para ser quase perfeito. Conheço alguns em Jacarta. O que é verdade é que a questão dos conflitos de identidade não está resolvida. A resposta de Alor não é canónica.

Se há coisa em que admito que o livro choque é na não-resolução desse problema: a identidade nele é "conflito". Ele não segue a história que todos, com uma grande intolerância, já tinham escrito para ele e por ele.
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