Filmando com Alain Resnais aos 87 anos


Por Vasco Câmara
Paris, 09.04.2010

Como se seguisse um fio em que a loucura se improvisa, vegetação daninha a crescer nas fendas do cimento, Alain Resnais segue esta história de desordem - como chamar-lhe? - amorosa.
"Segue" é uma banalidade.

Queremos dizer: escreve, pinta, faz teatro, televisão, faz filme caseiro e produção da Hollywood, simula "happy ends" sinfónicos, em resumo, faz um filme impossível de domesticar.

E leva atrás de si Anne Consigny, a outra: porque se estreia na "família" Resnais, aquela onde há anos dominam Azéma/Dussolier.

"Ninguém me fez sentir uma diferença de olhar de Resnais sobre a novata", diz-nos a actriz.
"Não tive problemas em entrar na família. Mas é claro que nada é um acaso em Alain. O que não impede de me ter sentido acolhida".

"Quando ele se encontra conosco, faz questão de ter visto antes todos os nossos filmes e de ter lido todas as nossas entrevistas - eu não tinha visto tudo de Resnais, tive de me actualizar. Logo, depois de ter visto toda aquela obra, quando o encontramos num 'plateau', não pode ser um 'plateau' qualquer.

"E houve uma sensação de dor, precisamente por ser a minha primeira vez. Se calhar é essa a diferença entre um actor 'novo' no cinema dele e um actor 'antigo'.

“Apesar disso tudo, gosto mais dele humanamente do que profissionalmente. Este homem é uma obra-prima de humanidade. Nunca tinha pensado que um ser humano pudesse ser tão extraordinário. A obra segue-o, mas é o lado humano que me dá vontade de lhe dar tudo".

"As coisas parecem todas premeditadas. Tudo é preparado. Ensaiamos uma semanas antes da rodagem. Não há improvisação, apesar de Alain pegar em duplos e de os colocar no décor, a ver o que vai fazer depois conosco, e ser capaz de mudar tudo relativamente ao que fez antes quando estamos no décor. Houve apenas um plano, que demorou dois dias a ensaiar e um dia inteiro a filmar, em que improvisámos: o plano-sequência em que os meus filhos vêm almoçar a minha casa. Começa com o aperitivo, o almoço, o fim do almoço e o jantar, tudo no mesmo plano. Mas foi a excepção".

Alain Resnais pediu aos actores que lessem todos os romances de Christian Gailly, o autor que o filme adapta ("... penso que para aprendermos a música da escrita, mas não houve um trabalho muito explícito em relação às vozes").

Alain Resnais não se defende atrás dos seus 87 anos ou da sua dificuldade em movimentar-se, sentando-se na cadeira do realizador atrás da câmara.

("Resnais está muito presente. Ele não anda facilmente. Mas anda pelo plateau como um cão a cheirar as coisas").

Disse a Anne Consigny que nunca encarasse a sua personagem como uma vítima.

"A existência da minha personagem coloca uma questão no filme: até onde se pode ir no amor? Dar a vida por alguém ainda é amor? Porque ela dá a sua vida ao marido, aceita partir com ele num avião, com aquela mulher [Azéma], a amante".

(Chegados aqui: a história de "amour fou" de "Ervas Daninhas" é tanto a que põe em colisão o marido e a amante, André Dussolier/Sabine Azéma, como a que permanece entre o marido e a mulher, André Dussolier/Anne Consigny;
é como se pudéssemos escolher o par ao lado do qual gostaríamos de ver este filme, um pouco na sequência da ilusão de interactividade com que Resnais jogava, conosco, com as várias hipóteses de narrativa, "e se...", de "Smoking"/ "No Smoking").

"Sempre achei que os filmes do Alain são filmes sobre a violência, mesmo se não vemos violência nesses filmes. Mas a personagem de Dussolier é muito violenta. E apaixona-se por aquela mulher [Azéma], que para mim é uma alegoria da violência.

"Ou seja: ele apaixona-se pela violência. A minha personagem não pode recusar essa mulher, nem aquela violência, porque tudo isso faz parte do marido. Ela é obrigada a partir com eles. Mas não tenho a certeza de que ela tenha razão.

"Não somos capazes de colocar um limite ao amor, então não há amor. Para mim, Suzanne [a sua personagem] não sente amor. Sente algo próximo da religião. Há um lado sacrificial nela. Mas há muitas mulheres que fazem isso pela família. Porque as mulheres foram educadas assim, gerações atrás de gerações."

A "música" depressiva interior ao cinema de Resnais (as medusas e a doença no musical "É Sempre a Mesma Cantiga", por exemplo...) encarna, em "As Ervas Daninhas", na desordem de uma amante ruiva (os cabelos daninhos...), na dedicação religiosa de uma mulher, na misoginia de um marido, Dussolier, que se fosse "serial killer" não nos espantaria. Não se sabe nada do seu passado, embora se sinta o negrume que por ali vai.

Resnais pediu aos actores que construíssem esse passado, que inventassem a biografia dessa(s) personagem(ns). A contribuição de Consigny:

"Eu inventei isto: conhecemo-nos [a sua personagem e a de André Dussolier] quando éramos estudantes, ele era o meu professor e tivemos uma história. Como eu era menor e fiquei grávida, casámo-nos e eu tive a criança. Ele entretanto teve uma história parecida com outra aluna da mesma idade, mas foi descoberto, e deu-se a sua queda social. Mas perdoei-o e de alguma forma protejo-o. A minha imaginação pôs-se a trabalhar a partir da diferença de idades que existe entre mim [44 anos] e o André [64 anos]. Era preciso integrar qualquer coisa de grave sobre o passado da personagem de André. Resnais adorou."

Numa entrevista à revista "Cahiers du Cinéma", Resnais falava, sem querer falar, de um novo filme. Quer filmar antes do Verão, depressa. Como se fizesse figas, invocou "santo Oliveira".

Na verdade, há 14 anos de diferença entre eles, Alain e Manoel. Mas podem competir para o título de cineasta mais jovem do mundo.

Consigny pode dizer algo sobre o assunto, porque trabalhou já com Manoel de Oliveira em "Le Soulier de Satin" (1985): era a Marie des Sept-Épées nessa adaptação da obra de Paul Claudel (1868-1955). De quem ela fala primeiro é de Luís Miguel Cintra, actor e seu "partenaire" nessa experiência portuguesa. "Ah, Luis Miguel, o mais belo e mais gentil dos homens do planeta..."

Já com os pés na terra, conta que vem de uma família que em vez de cantar no banho desata a citar o "Soulier de Satin", que ela interpretou pela primeira vez no palco, aos nove anos, numa encenação de Jean-Louis Barrault.

"Mas não há nada a comparar entre Alain e Manoel. Conheci Oliveira há 25 anos, tinha eu 20, era uma miúda, Manoel é que já era velho nessa altura [risos]. É difícil dizer que se conhece Oliveira. Direi que é muito mais cerebral que Alain. Alain é mais vivo, está mais na vida."

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