Entrevistas literárias da Paris Review



Por Eduardo Pitta

A Paris Review inventou a entrevista literária,
síntese da inteligência e do "glamour".
Dez amostras exemplares

Ao contrário do que o título sugere, The Paris Review é uma revista literária de Nova Iorque, fundada em 1953 por um grupo de amigos (Harold L. Humes, George Plimpton, William Pène du Bois e outros) que convenceu o príncipe Sadruddin Aga Khan a financiar o projecto.

Não cabe aqui fazer a sua história. Dizer apenas que foi nas suas páginas que, entre muitos mais, se estrearam Adrienne Rich, Philip Roth, V. S. Naipaul, Peter Matthiessen, Jeffrey Eugenides e Italo Calvino.

O mesmo se diga das primeiras traduções de Samuel Beckett em língua inglesa. O Círculo George Plimpton, entretanto criado, canaliza as doações que permitem a subsistência da Paris Review, cujo actual editor é Philip Gourevitch.

O melhor da Paris Review acaba coligido em volume. E foi a partir das duas compilações de entrevistas, feitas em 2006 e 2007, que Carlos Vaz Marques seleccionou, traduziu e anotou as dez que compõem esta edição: E. M. Forster, Graham Greene, William Faulkner, Truman Capote, Ernest Hemingway, Lawrence Durrell, Boris Pasternak, Saul Bellow, Jorge Luis Borges e Jack Kerouac.

Tenho pena que Elizabeth Bishop, T. S. Eliot, Dorothy Parker e Vladimir Nabokov não façam parte da selecção, mas não se pode ter tudo. Carlos Vaz Marques escolheu bem, apesar de ter deixado de fora todas as mulheres: Bishop, Parker, Didion, Morrison, Welty, etc.

Também é pena que cada entrevista não venha antecedida de breve nota biobibliográfica. Afinal, quantos leitores portugueses sabem, hoje, quem foi Edward Morgan Forster ou mesmo Boris Pasternak?

Logo a abrir, Carlos Vaz Marques anota: "As entrevistas da Paris Review são o mais extraordinário arquivo do fascínio que uma entrevista literária pode alcançar. Mais do que isso: são a invenção desse fascínio."

Exactamente. Como poucas, estas conversas fazem a síntese da inteligência com o "glamour". A edição portuguesa cobre os 15 anos que vão de 1953 (Forster e Greene) a 1968 (Kerouac). Embora houvesse muito por onde escolher, nenhum autor vivo foi contemplado. É, digamos, uma selecção clássica.

Um dos aspectos mais interessantes da leitura é a percepção da passagem do tempo. Em 1953, ainda Forster, então com 74 anos, falava de "Passagem para a Índia" (1924) como se tivesse acabado de o escrever na véspera, discorrendo sobre as grutas de Marabar com a desenvoltura dos iniciados.

Quinze anos mais tarde, Kerouac não tem telefone em casa. A entrevista (a mais longa do volume) tem de ser marcada com meses de antecedência. É o exacto oposto do estilo "controlado" de Forster.

Verdade que Kerouac tinha apenas 46 anos e era obrigado a aturar Stella. À laia de justificação da torrente confessional, Kerouac cita Goethe e Dostoievski, precursores, diz ele, de Neal Cassady, o amigo imortalizado como Dean Moriarty, personagem central de "Pela Estrada Fora" (1957). Sucede que o manuscrito da "Carta de Joan Anderson" foi literalmente pela borda fora.

Aspecto desconcertante é verificar como Kerouac já estava "datado" em 1968: "Allen [Ginsberg] já tinha escrito no jornal que eu não estava a dormir lá porque andava a tentar comê-lo, mas era ele que me andava a tentar comer a mim. Mas naquela altura, de facto, estávamos só a dormir. Depois disso ele arranjou uma almofada..."

Nos antípodas dos estilos "bloomsberrie" (Forster) ou "beat" (Kerouac), Truman Capote faz prova de precocidade: aos 10 anos concorreu a um concurso de escrita infantil com uma espécie de "roman à clef" que apresentava como ficção um escândalo local. A tramóia foi descoberta, o prémio foi à vida. Nessa altura percebeu que queria ser escritor. Em adulto, tirou desforra.

Não é por acaso que destaco Forster, Kerouac e Capote. Dos três, Capote consegue ser o mais transgressor e, do mesmo passo, o mais didáctico. Forster e Kerouac estão ambos, cada um à sua maneira, ocupados com o próprio umbigo. Capote disfarça muito bem. Disfarça tão bem que parece ser ele (e não Forster) o autor de "Aspects of the Novel" (1927).

Ouvi-lo discretear sobre "as rédeas estilísticas e emocionais" do texto, a técnica do conto, as primícias literárias, influências e desaires, releva do puro virtuosismo. Clichés óbvios? Seja. Repetir as vezes todas que forem precisas:

"Encontrar a forma certa para a nossa história é pura e simplesmente descobrir qual o modo mais natural de a contar. [...] A escrita tem as suas próprias leis da perspectiva, de luz e de sombra, tal como a pintura ou a música."

Estas Entrevistas da Paris Review pertencem à categoria de livros que lemos uma e outra vez, descobrindo sempre coisas novas a cada leitura.
http://ipsilon

Os Limites da Escultura



Por Luísa Soares de Oliveira

Escultura, desenho, e sobretudo instalação na mais recente individual do escultor Miguel Ângelo Rocha

Pode começar-se a observação da mais recente exposição de Miguel Ângelo Rocha, "Um exemplo daquilo", pela enumeração dos objectos utilizados pelo artista ou dos materiais de que se serve: baldes, malas, mesas, bancos, lixo; cartão, jornais, madeira, gesso, canos de PVC, tintas, grafites.

Pode também explorar-se o modo de montagem de cada escultura: no chão, no teto, nas paredes.
Pode-se, enfim, tentar distinguir entre o que é portátil (passível de ser comprado e levado para casa) e o que desaparecerá no momento em que terminar a exposição: estão no primeiro caso algumas esculturas, entre as quais as que incluíram um minucioso e elaborado trabalho de marcenaria sobre orifícios de origem possivelmente aleatória, e no outro todas as peças que receberam uma espécie de sombra projectada desenhada e pintada directamente sobre a parede ou o chão.

E, finda esta tarefa, o visitante compreenderá que o trabalho de classificação de que se encarregou, embora sedutor, não era o essencial para compreender a essência do trabalho de Miguel Ângelo Rocha.

O artista, que tem exposto regularmente em Portugal e nos EUA ao longo dos últimos 20 anos, surpreende desde as suas primeiras obras pelos materiais escolhidos e pela interacção que as peças realizam com o espaço.

De início, a lona escolhida como revestimento de estruturas de madeira abalava o carácter sólido que se atribui à peça escultórica - aparentando-a mais à moleza de um organismo vivo do que à vocação eterna da pedra, da madeira, do bronze ou do mármore, matérias-primas tradicionais da escultura.

Com o passar dos anos, esta lona foi depois substituída por tecido colorido e, mais recentemente, pelo "ready-made": objectos gastos e já inúteis, a um passo da destruição, são cortados, abertos, transformados ou acoplados com matérias diversas para produzir uma peça escultórica.

É o que se passa nesta exposição, onde mesmo assim podemos encontrar uma espécie de torso de cartão, pendurado numa parede, a recordar esculturas dos anos 90.
Miguel Ângelo Rocha parece assim trabalhar num permanente diálogo não só com a história da escultura moderna, pela via do "ready-made" duchampiano, mas também com a sua própria obra: a cada memória do passado que se interpõe entre si e o acto de produzir nova escultura, contrapõe-lhe uma espécie de "sim, mas também" que impede a repetição e instaura a diferença.

Como referimos, muitas das obras que aqui vemos incluem um detalhe desenhado directamente sobre o chão ou a parede, por vezes apenas indicado por uma linha recta, outras preenchido com tinta de aspecto industrial.

No limite entre a aresta e a sombra, consoante o lugar que ocupa em cada escultura, este detalhe acaba por acentuar a efemeridade da própria arte: se a escultura apenas se materializa no momento em que se expõe, o seu lugar no circuito económico é questionado.

Mais: a escultura passa a depender apenas da percepção do espectador, e por isso de uma organicidade que é diferente em todos os casos.

Cada espectador criará de certo modo a obra que vê, do mesmo modo que cada um trará para a exposição as associações que só ele poderá fazer com os objectos que o rodeiam.

Uma das peças de chão acentua esta possível leitura da obra de Miguel Ângelo Rocha: trata-se de uma placa branca colocada na vertical e que parece intersectada por barras de madeira.
A escultura, na sua aparente simplicidade, instaura uma intersecção no espaço que interfere de modo eficaz não só com os percursos possíveis do espectador na sala, como na percepção que este poderá ter das outras obras; por outro lado, vista de cima possui uma secção tão fina que a aproxima do desenho.

É por isso uma peça que trabalha tanto o espaço como aquele que nele se move. E remata, de modo particularmente feliz, esta série de um artista que demonstra aqui uma capacidade de renovação notável.
http://ipsilon

A imagem final de Merce Cunningham


Tacita Dean recorda Merce Cunningham
30.04.2010

Acompanhou três dias de ensaios no último ano de vida de Cunningham, e o resultado, "Craneway Event", vai poder ser visto a partir de 13 de maio, em Londres, na Frith Street Gallery.

Em novembro de 2008, a artista visual britânica Tacita Dean passou três dias a filmar os ensaios de uma companhia de dança numa fábrica da Ford em Richmond, na Califórnia, um edifício dos anos 30 com vista para os navios e os pelicanos de passagem pelo Pacífico.

À frente dessa companhia estava um homem de 89 anos, Merce Cunningham, uma das figuras mais seminais da história da dança contemporânea.

Meses depois, quando Cunningham morreu, a 26 de julho de 2009, Tacita Dean tinha nas mãos as últimas imagens do coreógrafo.
O filme que delas resultou, Craneway Event, vai finalmente poder ser visto a partir de 13 de Maio, em Londres, na Frith Street Gallery.

É um registo de 108 minutos que nos permite agora ver Merce Cunningham numa cadeira de rodas, a trabalhar (e às vezes a adormecer) com os seus bailarinos ao longo de três tardes parecidas com tantas outras, mas também "o documento de uma prática celebrada, de um homem lendário em acção, e de um momento que agora se perdeu para sempre no tempo", assinala a galeria.

Tacita Dean já estava a montar o filme quando soube que Merce Cunningham tinha morrido: "Instalou-me imediatamente numa ausência que eu inicialmente preenchi vendo registos de Merce a dançar na sua juventude, ou a tagarelar em entrevistas.

“Quando voltei ao filme, percebi que estava na posição verdadeiramente única de poder continuar a trabalhar com ele e de criar uma coisa nova, não só sobre ele mas com ele".

A alegria de Cunningham nos ensaios tornou-se "uma espécie de musa", uma força motriz:
"Comecei a achar que o Merce tinha disposto os componentes que fariam o filme - o edifício, os bailarinos, a luz, os navios e os pássaros, porque sabia que eles não iriam falhar na sua ausência".
http://ipsilon

Teatro das Sombras, Lourdes Castro, Manuel Zimbro

Por Óscar Faria

Issa Kobayashi (1763-1828) - sacerdote leigo de uma das escolas do budismo Terra Pura, desenvolvida no Japão a partir do século XIII - escreveu um haiku que Lourdes Castro (1930, Funchal) gosta de citar na sua versão francesa:

Neste mundo
caminhamos no telhado do inferno
e olhamos as flores.

O curto verso ajuda não só a entender a realidade na sua dimensão absoluta, sem separação entre opostos, mas também a perceber a coexistência desses limites em nós próprios. Num outro texto, também presente no quotidiano da artista, o "Sutra do Coração", uma outra ideia é formulada:

"(...) tudo, todos os fenómenos, têm por natureza o vazio; não são produzidos nem destruídos, nem impuros nem imaculados, nem crescentes nem decrescentes."

A sombra e a luz. Assim se designam Lourdes Castro e Manuel Zimbro (1944-2003), aos quais Serralves dedica uma exposição antológica.

Ao percorrer as salas do museu, e embora os trabalhos de cada um sejam, quase sem excepções, apresentados em salas separadas, não se pode deixar de perceber o quanto eles se unem: uma linha sem interrupções, participada por outros nomes - Pedro Morais, que também assina o projecto de arquitectura da mostra; Francisco Tropa, com quem a artista concebeu "Peça" (1998), uma obra sobre o nada; René Bertholo, com quem se iniciou a aventura da revista KWY (1958-1963).

O princípio da exposição é também o seu fim. Tudo começa e acaba no exterior do museu. Uma árvore é iluminada por dois projetores de modo a formar uma dupla sombra numa parede do auditório, que assume a função de ecrã.

O movimento das folhas e dos ramos torna-se imaterial, sublinhando assim uma existência para além da presença próxima da planta: o positivo e o negativo de uma realidade impermanente.

Este trabalho, "Sombra projectada de Adelina 'Magnolia Grandiflora' [Magnólia-de-flores-grandes]", datado de 5 de Março de 2010, prolonga os projectos relacionados com o "Teatro de Sombras", iniciado por Lourdes Castro em meados nos anos 60.

No dia seguinte à inauguração da mostra, a tabela da obra tinha desaparecido: efémera como o tempo da exposição, visível sobretudo depois do cair da noite, ou seja, após o fecho das salas do museu, esta peça fala-nos também de vazio, desse fazer nada a que a artista se tem dedicado sobretudo na última década.

Sem sombra: a exposição é um contínuo. Dos anos 50 até hoje. Um catálogo sem interrupções. Um caminho aberto na direcção do nada: um lençol por bordar em cima de uma mesa iluminada, quatro anos de linhas pedidas a uma bordadeira, um calhau vazio, as sombras de uma árvore.

Uma progressão de encontro ao imaterial: "O ser humano, o artista, a obra, são um só. A arte da obra interior, que não se separa do artista como a exterior, e que ele não pode fazer, mas apenas ser, nasce de profundezas que o dia desconhece", escreve Eugen Herrigel em "Zen e a arte do tiro com arco", livro publicado em 1948 [existem duas versões em português, editadas respectivamente pela Via Optima, Porto, 1987 e Assírio & Alvim, Lisboa, 1997].

Uma arte sem arte, o permanente exercício de Lourdes Castro.

Sintonizada com uma época, os anos 60, e com uma prática, a desmaterialização do objecto artístico, a artista é produtora de obras que, desde então, foram criando diversos tipos de deslocamentos: a influência inicial da americana Louise Nevelson (1899-1988), particularmente evidente nos objectos prateados - "assemblages" com uma composição plástica sedutora, característica sempre presente nas obras de Lourdes Castro -, vai progressivamente desaparecendo, ganhando então visibilidade uma série de trabalhos centrados numa pesquisa em torno da ideia de sombra, a qual será declinada em diversos projectos, uns mais coloridos - dir-se-iam pop, de acordo com o espírito da época da sua produção -, outros mais próximos de um esvaziamento das identidades, uma forma de trazer à luz a informação contida em cada postura adoptada pelos retratados, de pé, sentados ou deitados.

Uma exposição a dois, esta "À luz da sombra", comissariada por João Fernandes. Quase nada: tudo. "(...) surgir, incorporado ou transformado/ como tudo / com desconhecidas flores vazias", diz o mestre zen Hôgen Yamahata num dos seus textos.

Loures Castro e Manuel Zimbro: uma botânica, uma mineralogia. Um jardim de pedras. Não é possível separar. Há ainda os amigos: os pés e pernas recortadas em plexiglas azul, sobre as nossas cabeças. As sombras na parede ou sobre a tela. Tudo está no seu sítio, transparente: o herbário num corredor; os lençóis suspensos ou, em estrados, a dormir.

Não é necessária uma cronologia: é como uma peça sem intervalo, uma sucessão de sombras e iluminações. Pode falar-se igualmente de jardinagem a propósito da exposição: tantas as flores - existe mesmo um regador para alimentar a imaginação.

"'Trata o Vazio até ao fim' é o que a Sombra da Lourdes lhe poderia ter aconselhado a fazer... quero dizer, não fazer; ou, caso o fizesse, o vazio teria ficado cheio."

Palavras de Manuel Zimbro, que, um dia, olhou para as sementes que viajavam pelo ar e as tornou desenho e escultura em uma "História secreta da aviação", que continua a ser o exemplo da necessária atenção perante um quotidiano assombroso, impermanente, como a sombra de uma árvore projectada numa parede.
http://ipsilon/

Pippo Delbone e o nome dos mortos


Por Tiago Bartolomeu Costa
14.5.2010

"La Menzogna" é o espectáculo em que Delbono resgata, ainda a quente, os oito mortos do incêndio de uma fábrica em Turim. E é uma luta contra nós, espectadores, e contra a facilidade com que ficamos surdos, cegos e portanto moribundos

Turim, 5 de Dezembro de 2007. Um incêndio irrompe nas instalações da multinacional metalúrgica ThyssenKrupp. No rescaldo, encontram-se os corpos de oito trabalhadores que não conseguiram fugir às chamas. Os seus nomes acabarão esquecidos: as notícias dos jornais dão sobretudo conta da capacidade de reacção da administração da empresa, muito rápida a restabelecer o funcionamento normal da fábrica.

Quase um ano depois, a 21 de Outubro de 2008, no Teatro Stabile, em Turim, esses mortos passam a ter de novo um corpo, uma voz, e um nome, numa peça chamada "La Menzogna" (em português, "A Mentira"). Chamam-se, todos e cada um, Pippo Delbono.

A fábrica, alegoricamente recriada em palco, continua negra, perturbadora. Os actores, essa trupe de gente que incomoda o olhar pela deficiência, uma anormalidade que não é nem cénica nem ficcional, vão entrando, um a um.

"Chegaram os actores", pensa-se, tal como em "Hamlet". Chegaram para mostrar o que não podia ter acontecido. Para reagir. E, assim, fazer-nos reagir.

As cenas sucedem-se, há gritos, há vídeos moralistas, há a televisão italiana a entrar em cena relevando um país sem rumo, há cães que ladram e fazem lembrar as imagens das torturas em Guantánamo, há actores que se despem e se deitam no chão para nunca mais se levantarem, há espelhos postos à frente da cara dos espectadores, há disparos de máquinas fotográficas, e há violência psicológica, exercida sobre actores com deficiências mentais e físicas que nunca saberemos se chegam a compreender o que estão a representar.

Em Turim disseram-lhe que era ele, Pippo Delbono, "quem tinha um problema", que não compreendiam o que estava a fazer, que aquilo "não [era] teatro". Em Paris, onde "há uma arrogância no olhar", mandaram-no "levar no cu".

É a nossa vez, agora: "La Menzogna" chega hoje ao Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

Nova visita de um velho conhecido: em Portugal, Pippo Delbono já mostrou "Il Silenzio", "Guerra" e "La Rabbia" (CCB, 2004), "Êxodo" (CCB, 2006), "Barboni" (Festival Imaginarius, Santa Maria da Feira, 2007) e "O Tempo dos Assassinos" (Serralves, 2007).

"La Menzogna" é um espectáculo feito a quente por um encenador que nos habituou a uma visceralidade dramatúrgica que não ameniza a relação entre a acção, se há acção, e o espectador, aqui entendido como um soldado a necessitar de instrução acerca das suas funções no combate.

O combate que Pippo Delbono trava, "porque o público escolhe ir ver uma das suas peças", é contra nós mesmos e a facilidade com que "ficamos surdos e cegos ao que nos rodeia". É nessa altura, sublinha, "que começamos a morrer". Antes que essa altura chegue, a raiva, essa raiva que incomoda e que ultrapassa a ficção, funcionando como trampolim para "uma história prenunciadora do mal que nos cerca", avisa.

O que aí vem é um mundo soturno que transporta o insustentável peso da responsabilidade de intervir - mas, também, a consciência de que, provavelmente, "La Menzogna" será visto e digerido apenas como uma história.

É mais do que isso: o espectáculo em que Delbono regista o modo como a emoção se converte em ficção, a voragem mediática que as tragédias atraem, a especulação retórica do capital e a volatilidade do ser humano. Uma obra negra e radical em que os códigos do teatro fazem pouco pelo mais precavido espectador.

Ao dar voz aos que morreram, Delbono coloca o dedo na ferida e expõe, arriscando, a falência do teatro como hipótese de perdão da História. No fim os mortos levantam-se: não porque no teatro ninguém morra realmente, mas porque, se não permanecerem à nossa frente, serão esquecidos. Foi mais ou menos isto que sentimos quando vimos o espectáculo em Avignon, no Verão passado.

Auto-ficção
Quem é este homem que se expõe assim? "Pippo Delbono sou eu", diz ele, "que não [chorou] com a morte do pai, mas [chora] pelos mortos que não têm quem chore por eles".

A dada altura do espectáculo, lança, amplificado pelo microfone que nunca larga: "Desculpem-me se não chego a sentir a dor pelos longínquos mortos anónimos, mas somente a piedade. Por eles, por mim, pelas suas mortes, pela minha morte, pelo desconhecido. Nem mesmo quando o coração do meu pai, jovem, parou, eu senti qualquer dor".

É ele, Pippo Delbono, o mestre de cerimónias, o "condutor de uma viagem" que, "felizmente, se tornou maior do que [ele]". Pippo Delbono, disse ele que se chamavam aqueles mortos, um por um.

Encenador, actor, autor, resistente, autor fora de moda (os temas, aqueles temas, tornaram-se demasiado marginais), mas também da moda (causa frisson, Delbono, em gente com vontade de refundar o mundo a partir de uma ideia de ruptura, levada pela "loucura que a falsidade do teatro permite").

O processo de construção de "La Menzogna" deixou-o "perdido". "Descobri zonas em mim que não me deixam voltar atrás. Coisas difíceis de fechar que não sei onde me levam. Quando um espectador me insulta, isso ajuda a que me coloque no meu lugar", diz.

É "oriental na vida, não no palco": "A criação de um espectáculo é um processo muito doloroso. Um espectáculo não é violento para ser violento. É violento porque a sensação de segurança faz medo. Quando deixamos de ver o que está à nossa volta, começamos a morrer". A ideologia vem depois: "A ideologia é uma prisão, um risco, se achamos que em nome dela podemos fazer tudo. E é preciso correr riscos".

Há no teatro de Pippo Delbono uma raiva que se transforma em denúncia, mesmo se a palavra denúncia tem, para o encenador, "uma carga ideológica limitadora". "O mal chega por vagas", alerta.

"É preciso, como em Shakespeare, falar desse mal, dessa rede de mentiras que nos cerca, e denunciar a escuridão que se esconde por trás da normalidade. Da mesma forma que se pode, quando se fala da guerra, tentar encontrar a luminosidade que resiste".

Esta raiva não é só ficção, é a sério. "La Menzogna" é um teatro em carne viva, como se a protecção dada pelo palco, e pelos mecanismos de distanciação que a cena impõe, fosse cúmplice da tragédia, da miséria humana e da ignorância.

O escândalo passa a ser a palavra de ordem. "O teatro deve tornar-se um laboratório de escândalos", disse Brecht, frase recordada por Bruno Tackels no volume da série "Écrivains de Plateau" dedicado a Pippo Delbono (Éditions Les Solitaires Intempestifs, 2009) para defender que ele "pertence ao grupo de (raros) artistas para os quais o escândalo é uma realidade para ser levada a sério, e em particular numa época que fez de tudo para o erradicar".

"É preciso desmascarar os mascarados", diz-nos Delbono. "É preciso questionar o sentido de representação do teatro e voltar a dar à arte o seu lado político, filosófico, social".

Mais do que contra o efeito, o encenador diz que é preciso lutar "contra o risco de aceitar tudo". "O teatro é um acto de amor, não é um acto de raiva. Mais do que raiva, sinto impotência por não poder mudar a estupidez em que vivemos".

O escândalo é uma arma
"Pippo Delbono procura o escândalo porque ele sabe que é uma arma irredutível para denunciar a injustiça, o inaceitável, o incompreensível, mesmo o indizível (...). A provocação não ambiciona o poder, a lei ou a classe dominante; ela pretende, sobretudo, desmontar as injustiças engendradas pelo poder, pela lei ou pela classe dominante", escreve Tackels.

Teatro de alerta, portanto?
"Teatro sobre o teatro", desarma-nos Delbono, adepto da "auto-ficção teatral". Um teatro "que quer regressar ao teatro", explica-nos.

"O que ele fez em palco não é, de maneira alguma, a sua vida real, mas mais uma energia subterrânea que arranca de si mesmo e que se metamorfoseia em luminosidade cénica", escreveu Bruno Tackels.

Fá-lo porque quer falar de identidade. "O que há num nome?", pergunta, recordando novamente Shakespeare, agora em "Romeu e Julieta" ("Uma rosa perde o seu cheiro se não a chamarmos rosa?"): "Um corpo sem nome é menos um corpo?".

A "simplicidade poética" de que Delbono anda à procura está nesses corpos fora da norma, que mais se aproximam de um teatro "directo e brutal" em que "todo o acto iníquo, toda a decisão arbitrária e toda a situação que transporta a marca da injustiça podem encontrar a contestação e a denúncia", continua Tackels.

Um teatro feito de corpos humanos, e para corpos humanos. "Nos corpos que escolho (e que sabem sempre o que estão a fazer), há uma verdade mais profunda do que a palavra. A presença deles carrega uma beleza, uma brutalidade, uma fraqueza e uma força que dão mais conta da alma do ser humano que ali está do que do corpo que a enforma.

“A beleza está na alma, não está na estética", argumenta. "A televisão fixou os parâmetros da estética e amenizou a nossa relação com a dor, pela distancia", reforça. "Se deixarmos de ver a luz que passa através dos olhos, deixamos de ver o que importa".

O que importa, aqui, são os nomes dos mortos. "La Menzogna" será, eventualmente, uma peça de denúncia se, por causa dela, chegarmos algum dia a sabê-los de cor.
http://ipsilon

Uma montagem de Alvis Hermanis, da Letônia



Por Ana Dias Cordeiro
17.03.2010

Nostalgia e melancolia: o regresso de um homem, Wilkor, à casa e às meninas do seu passado. A passagem do tempo pode ser tão absurda e dolorosa como a guerra. Ambas nos aproximam da morte. Um homem e seis mulheres. Quinze anos passados e um reencontro que, pela aparente ligeireza das personagens, podia ser fortuito.

Como se nada unisse este homem, Wiktor Ruben, e estas mulheres, na peça "As meninas de Wilko", encenada pelo letão Alvis Hermanis.

Como se as idas de Wiktor a Wilko - e a sua própria existência - não tivessem deixado rasto: "Estava convencido que tinha passado por Wilko como uma sombra. (...) Pensei que ninguém aqui se lembrasse de mim", diz quando chega.

Afinal não. A inconsistência da vida, e da sua vida em particular, não chegaria a esse ponto. "Estavas enganado", diz-lhe Jola, antes de deixar a irmã Zosia completar: "Aqui em Wilko tornaste-te uma lenda."

Wilko, onde Wiktor passou alguns verões da sua juventude, era o nome da casa onde cresceram as seis irmãs, mais novas que ele. Quinze anos passados, umas estão casadas, outras separadas, com ou sem filhos, e neste dia reuniram-se ocasionalmente como o fazem habitualmente nas férias. "Íamos agora para a mesa. Jantas conosco, não é verdade?", diz Kazia.

Sentam-se a uma mesa comprida, algumas de costas para o público, como seria se estivessem em casa. E estão.
No palco acumulam-se mobília, roupa e objectos de tal forma reais que o cenário se transforma num espaço concreto e imenso, onde caberia toda uma casa, a das seis irmãs, e toda uma história, a de Wiktor, vítima da guerra e de si próprio.

Apenas fragmentos e sensações da sua existência são dados a conhecer, neste texto adaptado do romance do polaco Jaroslaw Iwaszkiewicz (1894-1980), "As meninas de Wilko", que o encenador da Letónia, Alvis Hermanis, pôs em cena para a companhia de teatro italiana de Modena, a Emilia Romagna Teatro Fondazione.

A peça estreou em Itália em Janeiro no quadro de um projecto de cooperação cultural entre seis cidades europeias. Além de Modena (Itália), Rennes (França), Liège (Bélgica), Tampere (Finlândia) e Berlim (Alemanha), inclui-se Lisboa e o CCB.

A idade de um país
O objectivo do encenador era transmitir a poesia da obra, explicou em entrevistas, Alvis Hermanis, 44 anos, para quem a memória e a passagem do tempo são o tema central desta peça e do seu trabalho em geral.

Interessam-lhe a melancolia e a nostalgia, não apenas como elementos melodramáticos mas como "qualidades que caracterizaram sempre a consciência cultural da Europa, ou pelo menos como era até aos finais do séc. XX", escreveu o encenador sobre o romance.

A Letónia de hoje, na União Europeia desde 2004, não pode dissociar-se da Letónia ocupada por Moscou e parte da União Soviética durante meio século. Os idosos do seu país serão quem melhor reflecte essas duas realidades.

Pelo menos, é neles que pensa quando fala na história recente da Letónia, no impacto das reformas da União Europeia, de controlar gastos do Estado e cortar ajudas sociais. Os idosos da Letónia "estão a viver na extrema pobreza, escondidos, quase invisíveis na sociedade".

É neles que pensa quando diz que, em teatro, é mais fascinante representar os idosos do que os jovens. "A vida de um ser humano é demasiado longa. Essencialmente é uma luta contra o tédio", ouvimo-lo dizer no documentário "Larger than Life".

E compreende-se melhor Viktor, não idoso mas marcado pela idade, quando Alvis Hermanis, numa entrevista, confessa: "A maior dificuldade para mim é combater a minha inércia."

Hermanis cria um teatro que junta realismo social e fantasia, parco em palavras ou totalmente mudo, como que transpondo para o palco o silêncio da era comunista e mistura influências do teatro russo (mais emocional) e do teatro alemão (mais intelectual).

Estudou no seu país, onde hoje é director artístico do New Riga Theatre. Venceu vários prémios e levou as suas peças a festivais internacionais. Esteve no ano passado em Lisboa onde apresentou "Sónia", de Tatiana Tolstaya, no Teatro Maria Matos.

Tempo e memória
O encenador encontrou no romance de Iwaszkiewicz os traços do tempo e da memória que o fascinam. Mas não só. O livro fala também de guerra, amores não correspondidos e a saudade de uma idade - a juventude - em que ainda há sonhos e ambição.

Para criar as imagens poéticas do romance original, actores e encenador jogaram, nos primeiros ensaios, com a improvisação. "Improvisação, com muita disciplina" que desembocou depois numa "forma muito precisa", trabalhada em detalhe em cada ensaio, diz Sérgio Romano numa entrevista por telefone a poucos dias de viajar para Lisboa.

Este actor que é Wiktor, o único homem da peça, congratula-se pela oportunidade de trabalhar com Alvis Hermanis. Não falar a mesma língua (o encenador é letão, os actores são italianos) exige a busca de novas formas de comunicação, sem palavras, e essas apelam mais aos sentidos e à vida interior das personagens, explica.

Nesta peça, os actores ora são personagens, ora personagens e narradores das suas próprias histórias. Como se narrar o passado fosse menos doloroso do que encará-lo. Quando, no início, Wiktor fala de si próprio, o monólogo é distanciado e impessoal.

Mergulhado na monotonia do trabalho diário desde que voltou da guerra, Wiktor não tinha tempo para reflectir, diz. E ainda bem, porque os 40 anos de vida ensinaram-lhe que reflectir não leva a nada.

Sentimentos em suspenso
Tomado por uma crise de meia-idade, atormentado pelas insónias, segue o conselho do médico e decide parar e tirar férias. É assim que Wiktor, o narrador, explica como Wiktor, a personagem, chega a Wilko e reencontra as irmãs (Laura Marinoni, Patrizia Punzo, Elena Arvigo, Irene Petris, Fabrizia sacchi e Alice Torriani).

Interiormente, continuam como jovens raparigas, mas num corpo de mulher, também elas mais velhas. Cada uma tem a sua relação muito singular - com contradições, ambiguidades e expressões sensuais - com Wiktor. Mas por falta de acção, os sentimentos ficaram em suspenso.

"Wiktor é um homem muito narcísico, inseguro, tímido, fechado sobre si mesmo, preocupado com a sua vida", diz Sérgio Romano. "Mas tudo isso denota também uma certa sensibilidade. Ele toma consciência do que fez mal no passado, daquilo de que se arrepende."

Porém não muda. Limita-se a constatar como tudo está na mesma, apenas o corpo mudou. E sem interesse de redenção por si próprio, pela sua vida, mantém a inércia dúbia e indolor de quem não suportaria ir ao fundo de si mesmo.

Mais velho e apagado, depara-se com o que poderia ter sido, a memória de um tempo em que as suas escolhas tinham leveza - só depois se tornaram irreversíveis.

"Não faço nada de importante", responde quando uma das irmãs pergunta que caminho tomou a sua vida nos quinze anos em que andou desaparecido. "Não vale a pena falar de mim, vivo como toda a gente." Vê-se como alguém banal, sem importância. E fala da guerra.

O actor Sérgio Romano dedicou-se a dar humanidade a esse homem "que não tem um lado só negativo" e a transmitir essa dimensão da consequência da guerra sobre a vida masculina, a forma como a impossibilita, fecha portas.

Na peça, o mundo masculino - que produziu guerra, destruição e morte - vai confrontar-se com esse mundo feminino que não ficou imune à violência.

Wiktor tem medo das decisões, tem medo de tudo, de si próprio, como lhe diz Zosia, em cena. Mas Wiktor, para quem todas as coisas são inalcançáveis, "não é maquiavélico, não é hipócrita", considera Romano. "Wiktor é sincero. E uma vítima de si próprio."
http://ipsilon

Isto era um Império, um livro-monumento


Por João Bonifácio
14.05.2010

É o primeiro romance "tout court" de Pedro Rosa Mendes e é um monumento. A investigação sobre o desaparecimento de um jovem indonésio em Timor transforma-se num requiem pelos restos do Império visto pelo outro lado, o dos colonizados. Extraordinário.

Não é apenas um romance, é um acontecimento.
"Peregrinação de Enmanuel Jhesus" é possivelmente o primeiro romance de Pedro Rosa Mendes, e para primeiro romance não se podia pedir mais: é um extraordinário "tour de force" que, centrando-se em apenas 20 e poucos anos de história recente de Timor-Leste, abre os braços e alcança 500 anos de destino.

Dizemos que "Peregrinação de Enmanuel Jhesus" é possivelmente o primeiro romance de Pedro Rosa Mendes porque em 2003 houve "Baía dos Tigres", que os críticos não souberam como classificar.

Supostamente, esta é a narrativa de Alor, um jovem arquitecto indonésio filho de militar que desaparece depois de desenhar a casa do futuro chefe timorense. Na realidade, a narrativa é fragmentada e dos estilhaços surgem as ruínas do Império português na sua ponta mais longínqua.

Antes de mais: finalmente não há dúvidas, este é um romance.
É discutível o "finalmente". Com "Baía dos Tigres", o editor só à terceira ou quarta edição tirou o "romance" da capa. Passou a ser assumidamente uma viagem às cegas.

Havia algum desconforto naquele "romance", mas eu continuo a achar que era um romance. Só que a viagem verdadeira, de recolha de material, que deu origem ao livro, estava muito presente no romance. Para mim hoje é óbvio que as melhores páginas desse livro são as que descolam da realidade.

Agora sim, neste romance eu não conheço ninguém que corresponda integralmente, por exemplo, ao Dalboekerk, que acaba por ser a voz central do livro. Mas por mais delirante que possa ser o que eles dizem ou fazem, é tudo pensado num contexto muito forte de verosimilhança - não podemos esperar que a voz de um militar indonésio seja a mesma de, digamos, o Padre Vítor Melícias.

A voz de um indonésio tem de ter uma âncora real, e de facto existiu gente que, como Dalboekerk, achou que a violência era justificada. Desconfio que o "finalmente é romance" tem a ver não com a ausência de romance no primeiro livro, mas sim com a minha ausência neste.

Viveu em Timor como correspondente - quando é que saiu e o que é que escreveu lá?

Saí sensivelmente há um ano, no final de abril - e foi quando saí que comecei realmente a escrever. As últimas semanas em Díli serviram-me para ter conversas que nunca tinha tido e para fazer duas viagens ao Matebian - que não é a montanha mais alta, mas é uma cordilheira muito importante.

Não serve propriamente para escalada, não há estradas, não há sítios para repouso, e desde 78, desde a derrota das forças timorenses face aos indonésios, esteve sempre habitada. Tem 30 quilómetros de comprimento e leva-se três dias a atravessar de um lado ao outro - fisicamente é muito exigente.

Como é um lugar muito isolado, acaba por tornar-se uma cápsula para perceber o que Timor foi perdendo. Tornou-se a âncora do romance. Mas não escrevi uma vírgula enquanto estive lá. As coisas estavam muito maduras em termos do que eu queria fazer: os momentos históricos de 1999 e o "flashback" da invasão indonésia de 1975.

Bem como a história central do livro, que é o mais importante: os processos de invenção das várias identidades timorenses. Que é o que acontece ao Alor, um filho de vários deuses que magnetiza o sonho de muita gente e de quem vimos mais tarde a saber que não vem de onde pensávamos que vinha - isso aconteceu a milhares de timorenses. E isso estava definido desde o início. A partir daí foi uma questão de tempo: isolei-me nessa Primavera e aí foi tudo muito intenso.

A questão da identidade: é mencionada por várias personagens uma certa permeabilidade timorense às aculturações, e o povo surge sempre como que envolto numa espécie de promiscuidade mitológica...

É preciso realçar que aquilo que o Dalboekerk ou o padre Belteran ou o Matarufa dizem são leituras muito pessoais, no sentido de pertencerem às suas personagens. Este é um ponto que quero sublinhar: poucas vezes eu permito a algum dos personagens falar por mim.

Eu parti para o romance livre das minhas opiniões sobre Timor. Em relação a essa "permeabilidade"... Essa questão é interessante porque, apesar de as personagens falarem nisso, uma das constatações da literatura antropológica sobre Timor - que entra em colisão com "a causa-Timor" - é a grande impermeabilidade da identidade timorense, a sua grande resistência ao que vem de fora.

Timor é rota de passagem há muitos séculos - os chineses andaram lá muito antes de nós -, mas manteve-se refractário, à margem das vagas de aculturação que varreram o império, fossem as hindus, as islâmicas ou as europeias.

Há razões para isto: Timor é uma realidade topográfica muito forte, é a única daquelas ilhas que não é de origem vulcânica, e foi ficando isolada. Até ao fim da colonização portuguesa, o número de quilómetros de estrada asfaltada era deprimente - o que é recorrentemente apelidado pelos australianos de "colonização indigente".

Mas a questão identitária é mais funda: eu tenho dúvidas que, do ponto de vista histórico, haja um povo de Timor. Isso é um artifício. Há povos de Timor, que viveram num deve e haver constante de soberania e vassalagem.

Essa "Fragmentação" dos povos está muito presente no livro: as personagens identificam-se como sendo de um sítio, de um clã, de uma família, como se os outros sítios, os outros clãs, as outras famílias fossem em termos culturais radicalmente diferentes.

A grandeza de Timor é entrópica. Timor é mais ou menos do tamanho do Alentejo e as suas grandezas expandem-se, no sentido em que funcionam porque são operativas. Funcionam quando se está lá.

A dimensão do resto do mundo é remetida a um lugar secundário - esta metade da ilha pensa muito pouco o mundo exterior. A grandeza vem também da topografia - o que explica a conflitualidade, porque há conceitos de distância que aumentam o espaço interior de Timor.

E há outras coisas: em Timor o que há mais são clãs, entidades que obedecem à divisão da ilha - o que a actual geografia política tem dificuldade em entender. Sem perceber isto não se percebem certos fenómenos de rivalidade e de pertença.

Por exemplo, Wehali nunca foi uma entidade política. É uma espécie de V Império timorense. Há um livro do Tom Therik ["Wehali - The Female Land"] que fala da força que pode ter um certo tipo de soberania mítica e espiritual.

O poder de Wehali não dependia de um poderio militar, que nunca teve, mas sim de uma soberania mítica.

No livro é como se cada personagem, até a mais secundária, tivesse uma cartografia mental própria e as diferentes cartografias se sobrepusessem e expandissem aquele território e o tornassem uma terra mítica primordial.

Sim. Quem vem de um quadro mental cartesiano não entende o quadro mental timorense - isso só é possível vivendo lá. Em Timor, a pertença de um indivíduo a um clã não se reporta a uma linhagem de sangue, mas sim a uma narrativa.

Em ocasiões muito raras de sacralização, o indivíduo ouve e repete a narrativa, contada pelos mais velhos, que vai do primeiro antepassado, mítico, até ao contemporâneo.

É uma espécie de retorno da memória, é constante e é um dos sentidos dessa cartografia. Tive a honra de assistir a uma dessas ocasiões. A narrativa torna-se uma entidade mítica que aglutina e dá sentido.

No livro isso é notório - pela forma como constantemente se passa de um micro para um macrocosmos, de uma narrativa individual para uma quase ontologia de cada ser ou de todo o povo.

Isso acontece porque há uma grande contemporaneidade dos tempos passados, uma presença constante dos antepassados. Todos os que vieram antes estão presentes - hoje diz-se que em Timor há culto dos mortos por causa dos massacres, o que é falso, esse culto já vem de trás.

Por um lado há essa presença ritualizada dos antepassados, por outro há uma impossibilidade de curar a violência passada. Há século e meio que a sociedade timorense não tem tempo para esquecer o sofrimento passado.

Há uma presença do trauma, da vingança - a diferentes níveis, o passado não passou. Há cerca de um ano e meio houve uma iniciativa de paz entre quatro aldeias em Viqueque. Isto mobilizou durante dois dias vários membros do Governo, dezenas de observadores, gente da ONU.

Era uma negociação ritualizada e o assunto, sabes o que era? A morte de um cão em 75. E a morte de um cão em 75 pode vir a ser a morte de um homem em 99.

Essa fragmentação social de que fala é que o levou a fazer o livro num registo polifónico, com várias vozes a avançar e a recuar no tempo?

A polifonia impôs-se desde o início. A polifonia é daquele espaço, é aquele espaço. Há um princípio que tenho e que vem do jornalismo, que é cortar o que não interessa: as vozes que há são as vozes estritamente necessárias para a dramaturgia.
Tal como na "Baía dos Tigres", a polifonia foi uma imposição da realidade. E é uma imposição da boa literatura: eu não devo assenhorinhar-me do papel do narrador.

Mas há personagens que são fundamentais para perceber a história de Alor e outras que apenas são usadas para contar as múltiplas tragédias de Timor.

O Bupati Gonçalves, a Wallacea, o Gloria Suprema são personagens instrumentais, servem a narrativa. Os outros não: o Alor caiu ali por causa deles. Vivem ali uma loucura política, como o Dalboekerk, ou em transcendência. Todos eles vivem assim, a sonhar com um tempo para lá de hoje.

O Dalboekerk sonha com um futuro que no fundo é um regresso ao séc. XVI, e nenhum deles vive exclusivamente no presente. E isto é verdade ali: há, por exemplo, pessoas que sonham com um estado cristão e dizem que estão a trabalhar para daqui a 20, 50, cem anos. A forma como se colocam estas pessoas à volta do Alor é muito autêntica, foi o que eu li na realidade mental das pessoas que conheci.

O Dalboekerk, como disse, acaba por ser a voz principal - tem uma visão terrível da colonização portuguesa. Diz que foi "juntar a fome à vontade de foder".

Sabendo qual é o ADN dele, há duas razões para ele dizer isso: a) a escala; b) a história. Custa-nos imenso, a nós portugueses, porque continuamos no labirinto da saudade, aceitar a nossa escala, aceitar que somos um país com dez milhões de pessoas, que não teve revolução industrial; uma potência sem potência, demográfica, militar e economicamente débil.

A Indonésia tem 220 milhões. Só contando com Java são 180 milhões de pessoas. Há uma incapacidade portuguesa em perceber o desprezo indonésio por Portugal. O que eu no fundo fiz foi um livrito sobre Portugal.

Não me pus a repetir o que nós pensamos sobre Portugal, antes escrevi o que os outros pensam sobre Portugal. Do ponto de vista de Java, que não tem complexos com a história - a sua cultura é tão poderosa que integra todas as vagas culturais que por lá passaram.

Uma coisa curiosa é que a transcendência de que falou a propósito de Dalboekerk não deixa de ser uma espécie de pragmatismo ontológico: ele acredita que num fim a vir a sua pátria será glorificada.

São essas as coordenadas mentais deles. A prateleira bibliográfica que juntei para criar Dalboekerk é muito vasta, porque a cultura javanesa é muito vasta, desde as artes marciais à pintura. Em contraste, a pequenez de Timor é imprescindível à falsa grandeza portuguesa.

Nós podemos conservar algo lá - o que é aceitável -, mas fazemo-lo sem exigência. Isso é muito comum aos portugueses e aos timorenses: a ausência de uma cultura de exigência.

Este romance é um caso curioso de romance de ideias com romance de aventura com tragédia em fundo. Como é que trabalhou esse equilíbrio?

O lado do romance de ideias não foi intencional. Talvez aconteça que, quando invento uma acção, os sedimentos de cada indivíduo estão muito presentes, o que resulta num romance de ideias. De qualquer forma, é impossível entender o que é que um militar indonésio pensa sem perceber a cultura que o cria. Há um sentido ontológico na cultura javanesa que tinha de estar presente.

Daí a necessidade de criar personagens eruditas?

Nem todas. Ninguém dirá que Wallacea é erudita. O Dalboekerk sim, tinha de ser uma figura erudita, por forma a aventurar-se numa leitura moral da história. Não é possível fazer uma viagem moral até ao fim da noite sem uma grande erudição.

Isso é algo que eu queria, sim, mas por ancoragem moral - aquela erudição é necessária.

O interessante é a forma como usa a erudição - em diálogo. Acha que o livro pode tornar-se intransponível para o leitor? Não é todos os dias que numa discussão se argumenta recorrendo a Flávio Josefo.

Se eu achasse que o livro estava coxo por esse lado não o tinha deixado imprimir. O que eu tentei foi procurar inteligibilidade linha a linha. Procurei uma grande fluidez, até dramática. Tenho noção - e muito orgulho disso - da quantidade e da complexidade de conceitos, e do léxico que é convocado.

Mas esses conceitos e esse léxico fazem parte do arquipélago, fazem parte daquele tipo de gente.

Virando o bico ao prego: não teve receio de usar a erudição de forma, digamos, pedagógica?

Nunca me ocorreu ser pedagógico. Não há urgência de ensinar nada a ninguém. Houve uma urgência, sim, de contar algo de novo. Quis de facto contar uma história da outra banda, só isso.

Este Alor podia ser uma pessoa retirada da vida?

É a personagem mais inventada do livro - não me baseei em nenhum jovem que desapareceu para o criar. Mas a experiência traumática do Alor, de desenraizamento, é a experiência de muitos timorenses, e eu conheci alguns: o católico é levado para o lado muçulmano, o civil é levado para a polícia, etc. É um desenraizamento que é de uma violência brutal e que conduz a uma espécie de "anunciação" tardia da verdadeira identidade.

Alor tem todas as qualidades, todos o desejam para seu líder, vêm nele a reencarnação de um Deus. É quase um super-homem.

Não é um super-homem. É um super-filho, preparado para ser quase perfeito. Conheço alguns em Jacarta. O que é verdade é que a questão dos conflitos de identidade não está resolvida. A resposta de Alor não é canónica.

Se há coisa em que admito que o livro choque é na não-resolução desse problema: a identidade nele é "conflito". Ele não segue a história que todos, com uma grande intolerância, já tinham escrito para ele e por ele.
http://ipsilon/.

"Vale tudo para chegar à Paz. Menos matar"


Por Vasco Câmara, com Margarida Santos Lopes
30.04.2010

É um espantoso exercício de cinema e um gesto de catarse - ou seja, equilibra-se entre uma necessária distância e a dolorosa proximidade.

É um grande filme de guerra. E é o mea-culpa do israelita Samuel Maoz, que tinha 20 anos quando foi fazer a Guerra do Líbano. Hoje tem 48, só agora deixou de sentir o cheiro a carne queimada. O espectador de "Líbano" não se livrará disso.

Só 20 anos depois é que o israelita Samuel Maoz deixou de sentir o cheiro a carne queimada. E só então conseguiu contar a história de Schmulik (diminutivo de Samuel, ele próprio), e de Herzl, de Yigal e de Assi, quando tinham 20 anos e estiveram, os quatro, dentro de um tanque na Guerra do Líbano. 6 de Junho de 1982. Imobilizados, perdidos, numa aldeia libanesa.

Entre a experiência de catarse e o exercício de "género" - ou seja, entre a proximidade dolorosa e a capacidade de manter a distância que lhe permita ser "filme de guerra" -, "Líbano" mete o espectador num tanque durante hora e meia.

Entrevista (por telefone) com um homem de 48 anos fragilizado por uma gripe e fortalecido pelo cinema (mas que não esquece: a guerra é o primeiro pensamento do dia e o último da noite).

Conversa sobre a sociedade israelita, sobre o exército mais poderoso do Médio Oriente, sobre a culpa depois do gatilho...

"Claro que fazer o filme foi a forma - não sei se é a expressão correcta - de me perdoar. Claro que tenho responsabilidades. Vê-se nas primeiras sequências de 'Líbano', na plantação de bananas, que quando se pressiona um gatilho é-se sempre aquele que executa..."

Dificilmente não se sentirá o cheiro da carne queimada na sala de cinema, onde "Líbano" estreia dia 6 de Maio.
Depois de se ver "Líbano", percebe-se uma deslocação no título: tem menos a ver com uma recriação de um acontecimento, uma guerra, do que com uma abstracção, a guerra.

E como o "Apocalypse Now" do filme de Francis Coppola, há uma certa ressonância mítica em "Líbano"...


Os títulos colocam os filmes num determinado lugar. E, sim, este título refere-se a algo de muito mais global. "Líbano" não se refere a uma guerra ou a um país. Refere-se à "geração Líbano", a nós, soldados israelitas, que estivemos na guerra do Líbano.
Talvez porque, sei lá, estamos todos um bocado fodidos da cabeça. É uma expressão que se ouve em Israel, "a geração Líbano", é algo de muito local.

Porquê tanto tempo para chegar a este filme? O que é que foi mais determinante: questões de produção ou o "timing" da sua catarse?

A primeira vez que tentei fazer este filme foi em 1988, quando acabei o curso de cinema na universidade. Mas ao fim de uma ou duas páginas de escrita do argumento, não parava de sentir o cheiro, o cheiro a carne queimada. Lembro-me que era tão forte que recuei.

Não só porque tivesse medo - claro que, de certa forma, tinha medo -mas sobretudo porque percebi que não podia fazer um filme só porque tinha estado lá. Tinha que ser um realizador, alguém que aproveitasse as suas memórias, a sua dor, as processasse, mesmo que de forma fria, em direcção a um filme que caminhasse por si próprio.

No estado em que me encontrava, o filme ia ser uma confusão total. O cheiro era uma espécie de sinal: enquanto sentisse o cheio a carne queimada não estava preparado para fazer esse filme.

O outro aspecto tem a ver com a minha geração, a tal "geração Líbano", que é uma geração do meio. Os nossos pais, os nossos professores, eles vieram da Europa, dos campos [de concentração] alemães.

Lembro-me da minha professora com o número [de prisioneira do campo] tatuado no braço a gritar, na aula, que tínhamos de lutar, e morrer se fosse necessário, pelo nosso país porque toda a gente nos queria exterminar.

Mas nós éramos rapazes normais, nascidos em Israel, que aos 18 anos só pensavam em raparigas e nas praias de Telavive. Estávamos a ser submetidos, de certa maneira, a uma lavagem ao cérebro. Voltar da guerra com duas mãos e dez dedos, sem marcas de queimadura na pele, e começarmos a queixar-nos de problemas dentro da cabeça, isso era imperdoável.

Diziam-nos: "Têm mas é de agradecer o facto de estarem vivos; nós estivemos nos campos [de concentração]." Lembro-me de odiar os campos deles, eles estavam sempre a usá-los... Não sentíamos que tínhamos legitimidade para nos queixar.

O ponto de viragem foi 2006, durante a segunda Guerra do Líbano [iniciada a 12 de Julho, quando guerrilheiros do Hezbollah raptaram dois soldados israelitas e mataram sete, numa incursão fronteiriça, o que levou Israel a bombardear o "País do Cedro" durante 34 dias].

Sentava-me em frente da televisão, a ver os "reality-shows". Sem falar. Mas comecei a ver os nossos filhos a lidarem outra vez com o mesmo "Líbano". Felizmente que tenho filhas, mas os filhos dos meus amigos iam para a guerra morrer.

Foi um sinal para mim: senti que não se tratava tanto dos meus problemas, das minhas necessidades, da minha dor; percebi que ia conseguir encontrar uma forma de fazer algo para, sem a ambição ingénua de acabar com a guerra, dar um passo.

Talvez conseguisse salvar vidas. Aprendi uma coisa: quando as coisas nos dizem respeito, podemos sofrer em silêncio. Mas quando implicam os nossos filhos, é totalmente diferente.

Ou seja: sendo um filme pessoal, no sentido de que nasceu de uma catarse, é um filme, e um filme de género, o "filme de guerra", que tem os seus códigos; o que implicou distância, dirigir actores, técnicos...

Exactamente. Por isso, quando sentia o cheiro a carne queimada achava que estava demasiado envolvido, não estava pronto a processar as minhas emoções.
É claro que o processo para aqui chegar foi terapêutico. Se calhar foi o melhor tratamento que consegui. Sem planejar isso.

E nesse processo viu filmes de guerra, como um escudo, para encontrar a distância do cinema?

Claro. Embora estes 25 anos tenham sido escudo suficiente [risos]. Quando me impus a mim próprio que tinha de fazer este filme, que talvez assim conseguisse mudar a opinião de alguém, de um pai ou uma mãe, senti também que era uma hipótese de emendar os meus erros. Espero que isto não seja patético: tive a oportunidade de fazer o oposto daquilo que tinha feito [na guerra].

Durante a rodagem de alguns dos planos, falava com os actores, gritava com eles, puxava por eles até ao limite quando achava que a cena se estava a perder... mas depois do "corta" conseguia controlar-me, a coisa acabava. Aprendi a fazer isso.

Que filmes viu?

Não vi "Apocalypse Now" antes de fazer o filme porque o fui vendo de dois em dois anos. É uma grande influência, mas é claro que dizer isso não é original. A primeira vez que vi o filme era ainda aluno da escola de cinema, e lembro-me que imediatamente começámos a falar sobre ele.

Um colega meu disse que o que tinha sido marcante era o facto de pensar que ia ver um filme de guerra, mas que a guerra se revelava uma coisa totalmente diferente. Isso foi exactamente a guerra que experimentei, a loucura, o caos...
Houve outros filmes que vi, sem influência directa: "O Caçador" [Michael Cimino], "A Barreira Invisível" [Terence Mallick], "Vai e Vê" [Elem Klimov].

Qual a reacção em Israel a "Líbano", que filma do lado da vulnerabilidade daquele que é tido como o mais poderoso exército do Médio Oriente?

Depois da guerra de 2006 [que causou mais de mil mortos, a maioria libaneses, e quase um milhão de deslocados - entre os quais 300 mil a 500 mil israelitas - sem que Israel conseguisse forçar a rendição do Hezbollah] toda a gente ficou a perceber que o Exército israelita não é aquilo que se pensa que é.

As reacções foram mais positivas do que negativas. Se tentar analisar isso, direi que quanto mais nova é a audiência mais positiva é a reacção; quanto mais velha, mais negativa.

Há aqui três gerações. Não posso julgar as pessoas que vieram para Israel da Europa, terão legitimidade para sentir que toda a gente nos quer exterminar. Depois há a minha, a do meio. E a geração mais nova, que é a geração global, do Google, do iPhone.

E é assim que se faz o discurso sobre História: quando a geração dos meus pais lutava, só atingia glória e vitórias; a minha já foi assim-assim; e quando a geração mais nova foi para a guerra, em 2006, a motivação era baixa. E foi o que se viu.

O soldado israelita pode questionar as razões pelas quais vai para a guerra?

Há uma diferença enorme entre o meu tempo, anos 70, e agora. Ir para o Exército é uma obrigação legal... Mas uma coisa é não querer fazer a guerra, outra não querer ir para o Exército. Pode-se ir para o Exército e não ir para a guerra: se se alega razões médicas, por exemplo, fica-se a assinar papéis.

Mas no meu tempo isso nem era uma opção. Era o mesmo que dizer que não se queria ir para a escola. Tornávamo-nos párias. E seria como andar com essa marca escancarada na testa.

A personagem do falangista no filme é o repositório do Mal - até a escolha do actor acentua isso. Os soldados israelitas são figuras de uma certa inocência. São manipulados. Isso é a sua visão do envolvimento de Israel nessa guerra? Isso não é retirar a responsabilidade do seu país?

Isto é apenas um sentimento pessoal a partir de um ponto de vista pessoal. É o que um ponto de vista pessoal pode dizer sobre uma verdade histórica. Para mim, os falangistas eram o diabo encarnado.

Houve coisas que vi, que eles fizeram, das quais ainda me é difícil falar. Nem se imagina. Por exemplo, quando estava em Beirute, no aeroporto, amarravam os prisioneiros entre dois carros e matavam-nos assim [no filme é assim que um falangista ameaça um prisioneiro sírio].

Quanto à responsabilidade individual, à minha, claro que fazer o filme foi a forma - não sei se é a expressão correcta - de me perdoar. Claro que tenho responsabilidades. Vê-se nas primeiras sequências de "Líbano", na plantação de bananas, que quando se pressiona um gatilho é-se sempre aquele que executa... Mas fui o último nessa cadeia de morte.

E há uma grande diferença entre sentir que não tivemos escolha e sentir que somos culpados, responsáveis. Isso é algo que não me abandonará. É sempre o primeiro pensamento da manhã e o último da noite.

Falou do cheiro a carne queimada... no ano passado, espectadores do Festival de Veneza, onde o filme se estreou, disseram ter sentido cheiro, cheiro a queimado, enquanto viam o filme. Como trabalhou o "huis clos" de "Líbano"? Como é que mergulhou os actores nisso?
Tem-se a sensação de que se está dentro de um tanque... mas se se vir bem, plano a plano, temos "close-ups" dos actores, nem sequer há um plano em que se vê um tanque.

Comecei a trabalhar com os actores dois meses antes da rodagem. Vou dar um exemplo: a primeira coisa foi explicar-lhes como era estar dentro de um tanque, mas em vez de lhes falar, e eles certamente iriam compreender, fechei toda a gente num contentor durante três horas. Deixei que eles experimentassem. E ao fim de três horas, a nossa energia está de tal forma em baixo... sempre à espera que alguém abra a porta. Eles não foram capazes sequer de falar quando saíram. Criei para eles experiências...

Não é algo sobre o qual se possa falar. É preciso levar os actores a um ponto em que eles... sintam. É preciso mais do que palavras. A rodagem foi tecnicamente difícil, mas os actores estavam prontos. Estávamos todos.

Israel acaba de completar o seu 62.º aniversário. No diário hebraico "Ha'aretz", o colunista Bradley Burston escreveu que a ocupação "é o pior inimigo de Israel". O Irã, o Hamas o Hezbollah "querem que Israel deixe de existir, mas o governo tem instrumentos para os combater". Contra a ocupação, porém, o governo de Benjamin Netanyahu, determinado em manter os colonatos judaicos nos territórios palestinianos, "é impotente". Concorda?

Não li esse artigo, mas daquilo que me diz não posso concordar totalmente, por causa do Irã. Esse é o inimigo mais perigoso. E não perecebo porque é que o Ocidente ainda não percebeu isso.
A ocupação, claro, é um inimigo de Israel. Devemos deixar a coisa... Para firmarmos acordos de paz não precisamos de nos tornar amigos. Se esperarmos para sermos amigos, isso vai demorar uns 100 anos, são precisas gerações.

Mais de metade da população de Israel quer acabar com este problema e ter uma vida normal. Mas, no fundo, a paz acabará por acontecer menos por razões humanitárias do que por razões capitalistas.

Há dias, um jornal israelita publicou um artigo em que dizia que cada cidadão israelita paga uma percentagem da electricidade da Faixa de Gaza. Isso causou um burburinho por aqui. Mas vale tudo para chegar à paz. Menos matar.

O que vai acontecer a seguir ao realizador Samuel Maoz?


É o que tenho pensado nos últimos sete meses. Não há dúvidas de que estou cheio de paixão e esfomeado [para filmar]. E as oportunidades agora serão grandes. Mas continuarei os meus projectos e à minha maneira.

Porque, é claro, neste último ano Hollywood tentou aliciar-me. É uma tentação, mas continuarei os meus projectos. Tenho a sorte de neste momento conseguir facilmente arranjar dinheiro.
Tenho dois projectos: um tem ainda a ver com a guerra, mas com os efeitos secundários da guerra. O outro é uma comédia negra.
http://ipsilon.

O Sítio das Coisas Selvagens


Dave Eggers, o rapaz que parte corações

Por José Riço Direitinho
15.01.2010

É um dos "meninos de ouro" da literatura americana, transformou uma história de 300 palavras de Maurice Sendak num filme e num romance de quase 300 páginas, "O Sítio das Coisas Selvagens".

Quando nas tardes dos anos 70, na casa em que o pequeno Dave morava com os pais e dois irmãos mais velhos num subúrbio de Chicago, passava na TV "O Feiticeiro de Oz", ele via-o escondido atrás do sofá.

Por isso, quando ouviu a história e folheou o livro "Where the Wild Things Are" ("Onde Vivem os Monstros"), de Maurice Sendak, não se deve ter admirado muito do sentimento de terror que o invadiu. E segundo revelou ao jornal inglês "The Telegraph", não foram apenas as imagens que o perturbaram em criança, foi também a "ambiguidade moral da história" contada.

Nessa altura, o pequeno Dave Eggers (n. 1970) estaria longe de imaginar que daí a três décadas seria co-autor do argumento de um filme baseado nessa história que o aterrorizou - feita com pouco mais palavras (no original em inglês) das que as que tem este parágrafo - e também que um dia, esse mesmo senhor Maurice Sendak que a inventou e fez os desenhos que a ilustram, lhe telefonaria para o convencer a escrever um romance ("O Sítio das Coisas Selvagens", Quetzal, 2009) que recriasse a história do irrequieto Max e dos monstros que ele encontra. Mas foi isso que aconteceu. Várias tragédias depois.

A matéria para Max
Em 1991, com 21 anos, Dave Eggers perdeu os pais com poucas semanas de intervalo, mortes causadas por cancer. Os dois irmãos mais velhos estavam a iniciar carreiras fora de Chicago, e coube a Dave acompanhar e educar o irmão mais novo, Cristopher, sete anos.

Muda-se com o irmão e a namorada para Berkeley, Califórnia, e no princípio sobrevivem com o dinheiro deixado pelos pais.
Esta dolorosa experiência leva-o a escrever o primeiro livro, "A Heartbreaking Work of Staggering Genius" (2000), livro de memórias sobre os trágicos acontecimentos, à mistura com um pouco de ficção.

A recepção por parte de leitores (um milhão de exemplares nos EUA) e dos críticos atiram o seu nome para o restrito grupo dos "meninos de ouro" da literatura americana.

A revista "McSweeney's", que ele criara em 98, torna-se numa publicação de culto. Confirmando as expectativas no seu potencial literário, Eggers publica em 2002 o primeiro romance, "You Shall Know Our Velocity", que ganha o "The Independent Book Award".

Mas por essa época, outra tragédia acontece na sua vida. A irmã, face ao sucesso obtido por "A Heartbreaking Work of Staggering Genius", reclama para si a parte da responsabilidade na educação do irmão mais novo acusando Eggers de mentir no livro. Pouco tempo depois, arrepende-se e deixa um "post" no síte da net da "McSweeney's" em que confessa que o que fez foi "a really terrible La Toya Jackson moment". E suicida-se. Dave quase nunca se referiu à morte da irmã.

As histórias narradas nesse primeiro livro serviram de inspiração a Eggers para criar o rapaz Max, o do filme e o do romance. Mas não apenas as recordações relacionadas com o irmão foram utilizadas, também as suas próprias memórias.

Por detrás da fachada de família feliz que aparentavam ser, Eggers referiu-se várias vezes aos problemas do pai com o álcool e às suas prolongadas ausências de casa.
Dave sentia-se responsável pela felicidade da mãe e, então, à semelhança do Max do romance "O Sítio das Coisas Selvagens", também ele imitava diante dela os movimentos de um robô com a intenção de a fazer feliz provocando-lhe o riso.

Em várias entrevistas menciona o facto de ter tido uma infância enclausurada, com horários pré-definidos para tudo, mas mais "selvagem" que a de Max: costumava jogar futebol com bolas de ténis em chamas, banhadas em querosene.

No entanto, ressalva que era bom aluno e dócil. Estas contradições, e a força criativa que delas advém, ajudaram a capturar no papel as emoções de Max e as angústias sem nome da infância, que constituem a matéria-prima da personagem.

Cimento fresco
Ao "The Telegraph", confessou ter aceitado a proposta de Maurice Sendak para escrever o romance porque essa seria uma oportunidade de explorar as suas ideias sobre a infância, o que lhe interessava, pois fora pai havia pouco tempo. Compara a idade da infância a cimento fresco, "cada marca pode ficar lá para sempre".

Mas a sua preocupação com as marcas deixadas na infância não é assunto recente. Por entender que a escola não promove o acto de escrever, ajudou a criar em 2002, em São Francisco, uma organização sem fins lucrativos, a "826 Valencia", que ensina crianças e jovens entre os seis e os 18 anos a escrever ficção. O que nasceu em São Francisco como projecto local estendeu-se a outras cidades como LA, Nova Iorque, Chicago, Boston.

Ainda nesta área da promoção da escrita, e também desde 2002, Eggers é o editor de uma antologia anual intitulada "The Best American Nonrequired Readings", que publica os melhores trabalhos de um grupo de alunos do ensino secundário que semanalmente se reúne com ele nos escritórios da "McSweeney's".

Este lado mais ou menos filantropo de Eggers, que parece querer fazer carreira como "escritor com causas", tem também forte expressão literária. Um dia, conheceu Valentino Achak Deng, refugiado sudanês estabelecido em Atlanta.

Durante meses ouviu as suas histórias de menino perdido na guerra civil do Sudão, nos campos de refugiados por onde passou, como chegou aos EUA, e tomou muitas notas de tudo. Depois pôs mãos à obra e escreveu um romance brilhante, "What Is What" ("O Que é o Quê", Casa das Letras, 2009), "autobiografia" ficcionada que se tornou num "bestseller".

Com o dinheiro obtido com os direitos do livro, que foi entregue a Valentino Achak Deng, este criou uma fundação com o seu nome que se propõe construir escolas secundárias no sul do Sudão; a primeira foi inaugurada em Maio.

Mais recentemente, já em 2009, foi a vez da publicação de "Zeitoun", a história de uma família muçulmana, sírio-americana, que viu ser preso Abdulrahman Zeitoun, um habitante de Nova Orleães que se deixou ficar na cidade durante o furacão Katrina para ajudar no salvamento dos necessitados que o Estado abandonara à sua sorte, e que depois foi acusado de terrorismo pela administração Bush.

Também o dinheiro obtido com os direitos deste livro (a publicar este ano em Portugal pela Quetzal) reverte a favor da Fundação Zeitoun, que se dedica à defesa dos direitos humanos.
Há quem diga que agora o que falta a Dave Eggers é já só escrever um verdadeiro romance.
http://ipsilon/.

Arte, Erotismo, Pornografia..

Almoço na relva causou grande escândalo em 1863. O público não apenas criticou a liberdade das pinceladas e a diluição das áreas cromáticas, como achou de mau gosto o nu feminino, que não era alegórico e nem representava uma deusa clássica. Manet declarou que o verdadeiro tema do quadro era a luz e foi essa idéia que deu origem ao impressionismo.


por Joana Stichini Vilela
29 de Maio de 2010

Largou as revistas pornográficas para ir fazer
os livros de arte erótica mais populares do mundo.
The Big Butt Book" acaba de sair

A primeira reacção é de espanto. A editora dos livros de arte erótica da editora alemã Taschen é uma mulher de 58 anos.

Durante quase três décadas, Dian Hanson foi editora de revistas pornográficas e para fetichistas. Ao mesmo tempo viveu em pleno era da libertação e experimentação sexual nos EUA.

Em 2001, ao fim de sete anos de insistência do fundador da milionária Taschen, aceitou o convite e assumiu o cargo de sexy book editor. "Sou uma pequena ditadora", avisa.

Não é difícil - faz quase tudo sozinha: pesquisa e escolha de imagens, entrevistas e edição de textos. Lançado na Europa este mês e nos EUA dia 1 de Junho, "The Big Butt Book" é o trabalho mais recente. Levou quatro anos a concluir. Resultado: 400 fotografias de grandes traseiros "icónicos". Palavra de editora.

Nunca se cansa de olhar para rabos e pénis?

[ri-se] Nunca, nunca, nunca. Ficaria cansada de olhar para os normais. Mas o prazer deste trabalho está em analisar milhares e milhares de fotografias até encontrar aquela a imagem extraordinária. Algumas são pura arte.

Onde está a fronteira entre arte e pornografia?

Na qualidade. Pode haver uma fotografia hard-core, que mostra actividade sexual explícita, mas que está tão bem encenada e iluminada que passa a ser arte.

Como encontra as fotografias?

Ligo a pessoas que conheço e que acho que podem ter coisas boas. Elas encaminham-me para outras. Pesquiso na internet, compro no eBay. É como se fosse uma caça ao tesouro. Depois passo horas e horas em arquivos. Para este livro tive de ver cerca de meio milhão de fotos.

E aprendeu muito?

Imenso. Por exemplo, na Alemanha medieval, durante as tempestades, as mulheres espetavam o rabo nu pela porta para assustar o diabo. Acreditava-se que o Diabo conseguia assumir todas as formas, menos a das nádegas humanas, e que humilhado pela visão de umas belas nádegas, viraria para longe o seu olhar diabólico.

E o que a surpreendeu mais?

Talvez a coisa mais horrorizante seja que agora as mulheres para terem estas nádegas grandes recebem injecções clandestinas de silicone. E há mulheres a morrer em guetos americanos e na América do sul. Tenho a certeza que estará a chegar à Europa.

As nádegas que se vêem no livro são todas naturais?

Quando percebi, evitei as artificiais. Porque não quero encorajar isto.

Como começou este fascínio pelo mundo da pornografia?

Muito cedo. Aos cinco anos, comecei a reparar no peito das mulheres, que nessa altura usavam sutiãs pontiagudos. Interrogava-me sobre o que estaria por baixo. Fazia desenhos. Sabia que este era um interesse errado e então rasgava-os e punha-os no lixo. Ao mesmo tempo, o meu pai andava nu em casa e eu tomava banho com a minha irmã e o meu irmão - o nosso lar era muito aberto nesse sentido. Por volta dos dez anos, descobrimos as revistas pornográficas do nosso pai. Fiquei fascinada. Queria crescer e parecer-me com aquelas mulheres com os seus grandes seios e ancas redondas.

Não a chocaram as revistas?

Não, não. No início da adolescência já tinha um apetite sexual muito elevado. Com 14 anos ia passear o cão à noite e os homens paravam de carro ao pé de mim. Eu deixava-os apalpar-me o peito até começar a sentir-me culpada. Aos 17 anos saí de casa. Os meus pais não conseguiam controlar-me. Então li o meu primeiro livro pornográfico.

O que era, lembra-se?

Claro. Tenho-o. Nesse ano, 1970, o governo tinha lançado um estudo científico sobre os efeitos da pornografia. A Greenleaf Classics, que fazia material pornográfico, editou o relatório na íntegra com ilustrações. Custou-me 30 dólares. Tinha tudo: gay, BDSM, bestialidade. Aprendi a masturbar-me com ele. Pouco antes de fazer 18 anos, conheci o meu primeiro marido, que achava que era transexual. Era outro hippie. Queríamos fazer pornografia.

E em que trabalhava nesta altura?

Era terapeuta respiratória em hospitais. Durante o dia tomava conta das pessoas, ressuscitava-as, era um grande anjo misericordioso. À noite tinha sexo promíscuo, ia a sex-shops, via filmes de sexo. Em 1976 conheci um homem que estava a começar uma revista pornográfica hardcore chamada "Puritan". Foi o meu bilhete para esta indústria fascinante.

Começou logo como editora?

Sim, essa foi uma das coisas maravilhosas desta indústria. Era descontraída e amadora. Nos anos 70 podíamos ser despedidos por gastar demasiado dinheiro a trazer raparigas de avião para sessões fotográficas ou a ir a clubes de sexo, mas conseguíamos sempre dinheiro para nos mantermos. Era a perspectiva hippie.

Como assim?

Depois de deixar a "Puritan", uma revista de hard-core pretensiosa, fiz equipa com um homem chamado Peter Wolf, que era outro hippie e que tinha inventado um género de revistas escritas pelos leitores. Implorávamos-lhes que nos mandarem fotos deles, coisas que tivessem escrito, para nos alertarem para actividades sexuais que estivessem a acontecer no país. Depois metia-me num avião e ia a estas pequenas cidades fazer sessões fotográficas de mães que faziam swing, empregadas de mesa nuas....

Nunca se sentiu a mais num mundo de homens?

Nunca senti que o meu interesse por sexo fosse o de uma mulher normal. Quando comecei, os homens estavam ansiosos por ter uma mulher. Achava que ia saber o que os homens gostam. Também tínhamos sempre as modelos por perto. Tornei-me uma figura maternal.

Para toda a gente?

Um pouco. Aprendi cedo que as mulheres são malvistas quando estão em posições de poder e que ser maternal é uma forma de exercerem o seu poder sem criarem ressentimentos. Uma mãe é muito poderosa, mas também é amada e respeitada.

Como é que entende tão bem os desejos dos homens?

Um: tive sexo com centenas de homens; dois: li milhares de cartas de homens que escreviam sobre a sua sexualidade. Eles não assumem isto às mulheres, mas estão desejosos de partilhar as suas vidas sexuais com uma mulher que dirige uma revista de sexo porque sentem que ela não os vai julgar.

Nunca os julga?

Sempre aconselhei os homens a controlarem-se nos actos, mas não nas fantasias. Tinha um leitor que fantasiava acerca de arrancar os dedos dos pés das mulheres à dentada. Eu respondia, "se essa fantasia o satisfaz, óptimo. Mas não há nenhuma mulher que goste que lhe arranquem os dedos dos pés". Eles respondiam, "claro que não, isto é o mundo da fantasia". Não se deve julgar as fantasias.

A pornografia tem mais a ver com fantasia ou realidade?

O consumidor médio está na casa dos 40 anos, é casado, tem filhos e usa a pornografia como um escape. Em vez de ter um caso, está a ter fantasias, a olhar para pornografia e a masturbar-se. O que, se me perguntarem a mim ou a outra mulher casada, me parece a melhor alternativa.

Mudando de assunto, é verdade que o seu hobbie é a taxidermia?

[Ri-se] É verdade. Tenho muitos exemplares. Começou na infância. Sempre gostei muito de animais e vivi em casas onde havia grande contacto com a natureza. A minha tia favorita tinha um namorado que estava a estudar taxidermia. Com sete anos tinha um pato embalsamado...

Em vez de um urso de peluche?

Sim! Eu dormia com ele e adorava-o. Quando me tornei independente, comecei a coleccioná-los e a aprender a fazê-lo. Tenho um jacaré que cumprimenta as pessoas que entram em minha casa, um ornitorrinco... Alguns são da era vitoriana. Na altura não eram espécies ameaçadas.

Estão espalhados pela sua casa?

Quando vivia em Nova Iorque, sim. Mas quando nos mudámos para Los Angeles, o meu marido reclamou, "estou farto de viver rodeado de todos estes animais embalsamados!" Estão todos no meu escritório de casa, menos o jacaré.

Desculpe estar a rir, mas...

Ria-se à vontade, toda a gente de ri. Não me importo de ser objecto de ridículo.

Tem interesses muito invulgares.

Vou só dizer isto: é porque eu era uma criança pouco popular e passava muito tempo sozinha e desenvolvi uma personalidade com pouco interferência dos meus pares e dos meus pais. Daí não controlar os meus interesses.

É mais pura.

Sim, sim. A maior parte das pessoas só são assim no início da infância ou no fim da vida. Eu permaneci sempre assim.

Em que está a trabalhar agora?

Comecei o último livro desta série: "The big book of pussy". Espero que venda muito, muito, bem.
http://ipsilon.

Uma montanha chamada Peckinpah

Por Manuel Mozos - cineasta
15.01.2010

Foi no Verão de 1973, numa matinée entre dois sorvetes do Santini, que vi no antigo Cinema São José, Cascais, Júnior Bonner - O Último Brigão. Eu tinha 14 anos e era o primeiro filme que via de Sam Peckinpah. Gostei do filme, sobre o mundo dos rodeos e o regresso melancólico e nostálgico de um veterano a essas exibições.

Fixei o nome do realizador por achá-lo estranho e engraçado. Só mais tarde soube que Peckinpah era de ascendência índia e que havia uma montanha homónima nos Estados Unidos.

Ao longo das décadas de 70 e 80 vi todos os outros filmes de Sam Peckinpah, nas suas estreias em Portugal, em reprises ou nalgumas sessões especiais, em ciclos, na Cinemateca ou cineclubes.

Mas vi ou revi quase todos em grandes salas que hoje já não existem: Império, Royal, Éden, Condes, Tivoli, Quarteto, Monumental, etc.

Não querendo ser inteiramente irónico, isso até faz sentido: o cinema de Peckinpah só poderia ser visto em ecrãs grandes e magníficos, mesmo se as cópias se partissem, tivessem riscos, faltassem fotogramas e planos ou até cenas inteiras e essas salas já as considerassem obsoletas, com muitos lugares vazios e em vertiginosa decadência, denunciando a passagem do tempo e prenunciando o seu fim com a chegada de outro tempo.

Assim são também os filmes de Peckinpah, as histórias dos seus personagens, heróis/anti-heróis crepusculares, resistindo estoica e romanticamente ao seu próprio apagamento e à aniquilação dos seus mundos.

Posso entender que Sam Peckinpah não seja um realizador "agradável", consensual, daqueles que fazem parte das famosas listas dos melhores realizadores do mundo.

Percebo que se lhe apontem inúmeros defeitos, algum gosto duvidoso, por vezes abusar de maneirismos, ser excessivo, controverso, truculento, conflituoso, intransigente, ser arrebatado por certos vícios.

Mas isso é também como ele é. Não se é bom, nem se é mau, nem melhor, nem pior. Apenas se é. E o que importa é saber isso, essa procura constante de perceber os homens, conhecer os outros e conhecer-se a si mesmo.

E é isso, sobretudo, que encontro nos filmes deste tão grande realizador: a integridade e constância na procura da verdade sobre o Homem, com os seus defeitos e as suas qualidades, as suas grandezas e as suas misérias, tão violento e cruel como apaixonado e nobre.

Gosto das 14 longas-metragens que realizou. Claro que há umas que gosto muito, como The Ballad of Cable Hogue, Straw Dogs, The Getaway, Bring me the Head of Alfredo Garcia, Cross of Iron.

E há os que gosto ainda mais: The Wild Bunch, Pat Garrett and Billy the Kid e Ride the High Country/Guns in the Afternoon. Mas com todas elas fui sempre aprendendo qualquer coisa mais.

E aquilo que mais destaco na obra de Peckinpah são os temas, a amizade, a traição, as amizades traídas, a cumplicidade, a integridade, a honra, a perseverança, a nobreza, o pendor sacrificial, o não haver limites, o romantismo e o hiper-realismo, no lado formal o grande trabalho de montagem, o saber do uso de diferentes objectivas, a utilização de zooms, diferentes velocidades de câmara, o slow motion, a dinâmica entre escalas de planos, os diálogos, os personagens na sua eloquente justeza e dignidade, na sua tristeza, melancolia e nostalgia, os brilhantes castings, os fabulosos actores principais e os maravilhosos e competentíssimos actores secundários, ver em fim de carreira tão enormes actores como William Holden, Robert Ryan, Joel McCrea, Maureen O'Hara, Ben Johnson, Randolph Scott, Ida Lupino, Jason Robards, Ed O'Brien, James Mason, Burt Lancaster, ou o trabalho de outros como Warren Oates, Steve McQueen, James Coburn, Kris Kristofferson, Charlton Heston, Richard Harris, David Warner, Emílio Fernandez, Ally McGraw, Ernest Borgnine, John Hurt, Rutger Hauer, Dennis Hopper, L.Q. Jones, Slim Pickens, Harry Dean Stanton, Dustin Hoffman, Bo Hopkins.

Ou mesmo ver Bob Dylan, algo canastrão, em Pat Garrett... para o qual compôs a banda sonora, onde se inclui um dos seus mais belos temas: Knockin'on Heaven's door...

Fico contente que a Cinemateca Portuguesa finalmente dedique um ciclo a Sam Peckinpah, pois até aqui só alguns dos seus filmes haviam passado, mas integrados em ciclos temáticos - ou de homenagens a actores (Joel McCrea, Charlton Heston) ou pela escolha dos espectadores da casa, na rubrica regular O que quero ver (Straw Dogs, 2001); ou a escolha de Miguel Esteves Cardoso (para as 3.ªs-feiras clássicas, 1995, The Wild Bunch), o que me surpreendeu e muito me agradou. Tal como agora vejam o ciclo.
http://ipsilon.

Werner Herzog, segundo Nicolas Cage


Por Helen Barlow
20.05.2010

Conheciam-se há quase 40 anos, mas nunca tinham feito nada juntos, até este "Polícia sem Lei" em que Cage snifa cocaína como um verdadeiro "junkie" em lugares malditos da sua cidade, Nova Orleães. Herzog continua pasmado (e é mútuo): este é o encontro de dois "cavalheiros maravilhosos"

Em todas as entrevistas acerca do filme que fizeram juntos, Werner Herzog e Nicolas Cage são peremptórios nisto: "Polícia sem Lei" nada tem a ver com o filme de culto homónimo que Abel Ferrara realizou em 92, com Harvey Keitel.

"Propus 'Port of Call New Orleans' como título", recorda Herzog, "mas infelizmente não consegui convencer os produtores."

Nova Orleães, a cidade onde tudo isto aconteceu, ficou, no original em língua inglesa, apenas como subtítulo de "Bad Lieutenant", e a proximidade com o filme de Ferrara ganhou, assim, proporções que não estavam nos planos.

Certamente que hoje, quando Herzog, com 67 anos, e Cage, com 46, falam - em entrevistas separadas -, acabamos por perceber que a única coisa que os dois filmes têm em comum é que ambos representam um encontro de cabeças e de talentos originais e de excepção.

Cage trabalhou, de resto, com Keitel em várias ocasiões: "Harvey e eu somos amigos e eu adoro os filmes do Abel [Ferrara], incluindo 'Polícia sem Lei'".

Herzog é toda uma outra história: conheceu-o nas vinhas californianas do tio, Francis Ford Coppola, quando tinha apenas oito anos.

"O Francis estava a dar uma festa e o George Lucas estava ainda no carro quando o Werner entrou", conta Cage, penetrando na sua infância, que foi bastante privilegiada.

"O Werner estava com uma t-shirt branca e tinha uma tatuagem com uma caveira e um chapéu alto. Lembro-me disso, embora seja uma imagem assim um pouco dissipada, de há muito tempo atrás".

Não diz se o realizador alemão contribuiu para a sua paixão por todas as coisas góticas e germânicas (até há pouco tempo, era proprietário de um castelo na Baviera).

Mas já não usa o anel de caveira que durante muitos anos o acompanhou. "Isso veio de uma filosofia que li, japonesa, que diz que temos de merecer o direito a morrer. Trabalha-se arduamente porque a morte é o nosso descanso. É uma filosofia sobre não desperdiçar o tempo de vida a viajar, a aprender sobre a vida e a natureza, a conhecer pessoas, ou através do próprio trabalho árduo, a fazer filmes, por exemplo. Por isso, não, já não preciso do anel. Ele ficou, digamos, tatuado em mim", explica o actor.

"Polícia sem Lei", dizíamos, é completamente um encontro de mentes. Quando começaram a fazer o filme, Cage e Herzog estavam de acordo em dois pontos: que o filme devia ser filmado em Nova Orleães e que ambos adoravam répteis.

A peste e o cavalheiro

Filmar com Nicolas Cage foi, para o cineasta alemão, uma espécie de ajuste de contas com a história. "Achava um absurdo nunca termos trabalhado juntos. Por isso, quando surgiu o projecto, tivemos duas curtas conversas ao telefone", diz Herzog.

"O Nicolas estava a filmar na Austrália; não nos encontrámos, mas decidimos que tínhamos de o fazer. Disse-lhe que o levaria onde nunca havia ido antes e ele não se juntaria ao projecto se eu não fizesse parte dele. Eu também não o faria se não fosse com ele, pois a perspectiva de trabalhar com este actor fenomenal era excelente".

A ideia de filmar em Nova Orleães foi mais prosaica: havia fortes incentivos fiscais em jogo, explica o realizador. "Queria fazer o filme logo depois do furacão Katrina, após a total destruição da cidade, no meio de toda aquela decadência moral, do colapso da civilidade, das pilhagens.

Achei fantástico filmar lá e, claro, havia também o facto de o Nicolas ter lá uma casa. Ele convidou-me para ficar em casa dele, mas eu disse que era melhor não criarmos grandes intimidades. Queria separar as coisas, para manter uma certa intensidade nas filmagens".

Cage, claro, vivia ele próprio em Nova Orleães (embora neste momento já tenha vendido as duas mansões que lá possuía, uma das quais se diz ser assombrada, para minorar as suas muito divulgadas dificuldades financeiras), e admite que a sua relação com aquele local, que descreve como uma "cidade de magia e misticismo, simultaneamente bela e assustadora", contribuiu positivamente para o seu desempenho.

"Tenho com aquela cidade uma relação de amor-ódio, que é o tipo mais forte de relação. Sinto-me simultaneamente amaldiçoado e abençoado em Nova Orleães e fiquei aterrorizado com a ideia de voltar e fazer lá um filme. Mas precisava de o fazer em Nova Orleães, para enfrentar qualquer possível experiência estimulante que surgisse, para saber que era capaz. E fico contente por poder dizer que resultou", conclui agora.

O filme de Herzog apenas se assemelha superficialmente ao "Polícia sem Lei" de Ferrara no sentido em que também retrata um polícia corrupto, viciado em drogas, que age à margem da lei.

Diz Cage que, em muitos aspectos, este tenente é de louvar, por ser um dos poucos que ficaram na cidade quando o caos era total. Inspirou-se nas dores de costas crónicas da personagem para desenvolver um andar ligeiramente curvado na sua interpretação.

"Era uma oportunidade para fazer algo com a movimentação corporal da personagem. Queria que ele tivesse um andar diferente. Quem sabe o que aconteceria se tivéssemos de viver com aquelas dores? Recorreríamos ou não às drogas? Em última análise, quis perceber se conseguiria trazer para o filme o vício da droga com o filtro da minha sobriedade e o poder da minha imaginação. De forma a que se obtivesse uma abordagem impressionista, ao passo que em 'Morrer em Las Vegas' a abordagem era mais 'fotorrealista'".

A representação de Cage foi tão convincente que Herzog não acreditava que o actor - cuja pesquisa para a sua personagem de "Morrer em Las vegas" (que lhe valeu um Oscar) se centrara no consumo de quantidades absurdas de álcool - estava de facto sóbrio.

"O Werner pensou que eu estava a consumir cocaína. 'O que é tens nesse frasquinho?', perguntava ele [Cage imita o sotaque alemão]. Não podes fazer isso aqui no local das filmagens!' Achei que isso era um bom sinal".

"Parecia tão real", concorda Herzog. "Ele snifava com tal convicção que senti mesmo que tinha de acabar com aquilo. Nunca consumi drogas em toda a minha vida. Mesmo quando estou entre pessoal do cinema e me passam um charro, passo-o ao próximo. Nunca dei uma passa. Nunca consumi nada disso, não por ser um moralista, mas simplesmente porque não gosto da cultura que rodeia as drogas. Na realidade, retirei pelo menos cinco cenas em que ele snifa cocaína ou heroína. É claro que tínhamos um especialista que providenciava um pó com um aspecto exactamente igual ao da cocaína, mas era a forma como o Nicolas a snifava e a forma como ele se transformava a seguir que me faziam pensar: 'Meu Deus, tenho de acabar com isto!' Claro que depois percebi que era a fingir, mas isto mostra bem o calibre dele como actor".

Herzog diz que Cage é "um dos actores mais incrivelmente dotados" com que já trabalhou: "Klaus Kinski foi um. Christian Bale foi outro, e há mais uns quantos". Mas enquanto descreve Kinski como "uma peste", Herzog diz que Cage "é um cavalheiro maravilhoso".

Cirurgia de coração aberto

Eva Mendes é a prostituta que está ao lado de Cage em "Polícia sem Lei". Herzog teve de insistir para tê-la no filme, já que a personagem principal tinha de estar bem apoiada por um forte elenco.

"Já imaginaram o Humphrey Bogart no 'Casablanca' sem a Ingrid Bergman? Estaria desamparado. Mas os produtores não queriam a Eva. 'Mas quem é ela?', perguntavam. 'Quase não fez filmes nenhuns'. Cinco meses mais tarde, quando acabei o filme, Eva foi eleita a mulher mais sensual e erótica do planeta. Nessa altura recebi uma série de telefonemas dos produtores. 'Ainda bem que ela esteve connosco no projecto!' E eu disse-lhes: 'Seus idiotas! Eu tive de lutar para tê-la no filme!"

Talvez igualmente importantes tenham sido os répteis de Herzog. "O Werner é muito dedicado às suas iguanas e quis ter a certeza de que, sempre que possível, estariam em grande plano, no centro da acção", recorda Cage com um sorriso afectuoso.

"Fizemos um pequeno convívio e ele estava no bar, muito perturbado porque não estava a conseguir tempo suficiente dos seus répteis no filme. Precisava de, pelo menos, três a cinco minutos com eles e, se não conseguisse isso, ficava tão transtornado que nunca mais dirigia nenhum filme. Voltei para casa nessa noite a pensar nisso, liguei-lhe e disse: 'Ainda temos de filmar aquela cena em que eu prendo o casal de jovens na rua. Porque é que não cortas essa cena e aí podes ter todo o tempo que quiseres para as iguanas?' E ele disse: 'Não, não, Nicolas! Obrigado, és muito gentil, mas também preciso dessa cena'".

Não há muitos actores que, como Cage, tenham em comum com Herzog esta paixão pelos répteis. "Eu não sabia disso até jantarmos juntos em Nova Orleães, antes de iniciarmos as filmagens", nota Herzog.

"Sim, adoro filmá-las e dar-lhes papéis importantes nos meus filmes, e o Nicolas apoiou-me muito nisso. Quando cheguei ao local de filmagens, fui logo falar com o director de fotografia e disse: 'Não toque nisso, vou filmar eu próprio com esta lente pequenina e o cabo de fibra óptica'. Tive de a segurar apenas a alguns milímetros da pele da iguana. Ela ficou com um ar tão estúpido e surpreendido que eu sabia que o resultado iria ser desconcertante".

Cage apreciou a maneira como Herzog vai ao essencial.
"O Werner não precisa de muita parafernália, nem de muitos ângulos de câmara. E também não precisa de muitos 'takes'. Isso cria uma atmosfera onde nos sentimos mais livres e espontâneos. Funciona bem com o que eu estava a tentar fazer, e que era uma abordagem baseada no jazz americano - já que estávamos no berço do jazz. Era uma mistura do essencial e da vontade dele de ir a alguns cenários no mínimo arrojados, como a cena no lar de idosos e a exposição no antro de droga, e também a cena na rua, com a arma no ar, tudo coisas que não estavam no roteiro, que foram improvisadas".

"Tenho de admitir", diz Herzog, "que as minhas filmagens são muito calmas. Só falo baixinho; é como uma cirurgia de coração aberto. Não raro, termino a meio da tarde, depois de ter trabalhado calmamente. Não é nada agitado".
http://ipsilon.